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26Out18


Humanismo versus populismo


“O uso massivo das mídias sociais, desviando-se da TV e da imprensa tradicional, é um fenômeno novo. Mas o fato de abandonar as divisões políticas tradicionais entre direita e esquerda também parece alinhado com as novas sensibilidades mundiais. Então, o que está acontecendo?”

O artigo é do sinólogo italiano Francesco Sisci, professor da Universidade Renmin, em Pequim, na China. O artigo foi publicado por Settimana News, 24-10-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o artigo.

Há um século, a Itália tem sido o laboratório da política ocidental. Depois da Primeira Guerra Mundial, há cerca de 100 anos, Mussolini foi o primeiro a perceber a importância de unir os slogans dos movimentos de massa e socialistas com ambições nacionalistas. Essa química mostrou-se mais fundamentada do que as reivindicações internacionalistas anteriores do movimento socialista original e se espalhou muito rapidamente.

Cerca de 70 anos depois, na queda do Muro de Berlim, Berlusconi mudou novamente a face da política. Quase como um moderno cidadão Kane, Berlusconi usou a potência máxima do seu império midiático, combinando a sua influência econômica com uma nova sensibilidade popular – alimentando-se de alguns dos instintos mais básicos das massas, mais uma vez alimentando-se efetivamente de experiências do movimento juvenil dos anos 1970. A combinação foi extremamente bem-sucedida e, possivelmente, foi seminal para inspirar a ascensão ao poder de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos.

Então, será que o Movimento Cinco Estrelas e o governo da Liga também são uma nova página que inspirará a política em todo o mundo? Certamente, o uso massivo das mídias sociais, desviando-se da TV e da imprensa tradicional, é um fenômeno novo. Mas o fato de abandonar as divisões políticas tradicionais entre direita e esquerda também parece alinhado com as novas sensibilidades mundiais. Então, o que está acontecendo na Itália?

O que se segue são notas dispersas elaboradas com base em conversas com o professor Vincenzo Scotti, ex-ministro do Interior da Itália, decano da Link University e supostamente próximo do Movimento Cinco Estrelas (membro sênior no atual governo de coalizão), e com Giovanni Salvi, procurador geral da Roma.

Quaisquer mal-entendidos e erros são exclusivamente culpa minha. Após meses de conversas na Itália, eu acredito que eles oferecem perspectivas interessantes sobre a atual crise política e social na Itália e sobre como alguns italianos veem a situação global.

Uma história que começa no fim dos anos 1970

Para o professor Scotti, a longa onda da história italiana que levou aos movimentos populistas pode ter começado no fim dos anos 1970. O fim do padrão-ouro provocou uma longa temporada disruptiva de alta inflação [Ver: Veja-se Adam Tooze, Crashed: how a decade of financial crisis changed the world, 2018].

Henry Paulson, como chefe do FED, usou políticas monetárias e altas taxas de juros para derrubar e controlar a inflação. Políticas anti-inflacionárias destruíram a alavancagem de barganha para as trade unions. Além disso, os bancos dos Estados Unidos, sobrecarregados com taxas fixas de empréstimos imobiliários de longo prazo faliram por causa do novo ambiente. Washington permitiu uma maior medida de liberalização para salvar o sistema bancário.

Então, nos anos 1990, a liberalização imobiliária (que permitia que pessoas mais pobres comprassem casas com empréstimos mais baratos), uma maior liberalização financeira, vendas de dívidas dos Estados Unidos internacionalmente e, depois, o desperdício em esforços de guerra fracassados desde 2002 criaram a mistura que levou à crise financeira de 2008.

Essa situação provocou a maciça liberalização do mercado nos anos 1980, assim como o socialismo foi o subproduto do processo inicial de livre circulação do capitalismo e da industrialização em 1700. A inspiração filosófica de tudo isso foi o impulso monetarista da Escola de Chicago e o governo Reagan.

Portanto, em alguns poucos pontos:

- No início dos anos 1980, os conflitos sociais deveriam ser resolvidos pelo mercado e, de fato, foram arrancados do debate público social e político.

- Isso acabou com a política do modo como era concebida há 200 anos, desde a Revolução Francesa, quando o Estado, os órgãos sociais ou o debate público mediavam os interesses e as pressões conflitantes.

- A negociação bilateral entre forças sociais deveria começar em um ambiente intelectual onde as leis do desenvolvimento e a acumulação mais eficiente de riqueza são os princípios dominantes.

- Idealmente, retornaríamos a uma situação de capitalismo primitivo, dos anos 1700 na Grã-Bretanha, quando as forças produtivas queriam afirmar sua emergência e força contra os interesses constituídos do passado: os bens comuns das pessoas comuns e os privilégios da aristocracia. Assim como o Estado defendeu as novas forças produtivas, nos anos 1980 o Estado teve que apoiar o novo liberalismo.

Isso se combinou com o advento da internet e da revolução das telecomunicações, colocando um motor turbo nessa liberalização (assim como a Revolução Industrial em 1700 foi uma consequência e um acelerador do liberalismo de Adam Smith). Os tempos da comunicação se encurtaram e, portanto, os processos de tomada de decisão e de reflexão se tornam cada vez mais eficientes, eliminando cada vez mais o elemento humano e acelerando a mecanização.

Isso libertou as forças produtivas que também ajudaram a provocar a queda do Império Soviético, o que, por sua vez, libertou os limites geográficos da difusão de novos negócios e intensificou a deslocalização. O fim da URSS e o fracasso do projeto comunista, portanto, também eliminaram um obstáculo ideológico às ideias monetaristas.

Isso liberou uma dinâmica de produção gigantesca e criou uma abertura para a globalização dos mercados e das finanças. As pessoas começaram a movimentar a base de produção, de acordo com a conveniência dos custos de produção. Da mesma forma, os impostos começaram a ser pagos não mais a um único Estado, mas se distribuíram em vários Estados, de acordo com a conveniência financeira.

Choque de culturas

Em retrospecto, os esforços dos últimos dois séculos, após a Revolução Francesa, foram os de criar mecanismos de mediação e de compromisso entre as forças de mercado e a exploração das pessoas. Nisso, a resposta radical (que vai de Marat-Rousseau a Marx e a Lênin) é que o ideal de igualdade/ditadura do proletariado se oporá ao impiedoso rigor das regras do mercado. Isso se baseava na ideia de uma vontade geral (interpretada pelos líderes dos trabalhadores que sabem) e a redistribuição da cota de mais-valia de trabalho identificada pelos marxistas.

Com o fim da URSS, o ideal de reajustar o mecanismo de mercado de uma forma positiva (através da revolução radical ou da reforma social-democrata) entra em colapso. Portanto, o ideal de ter um mercado muito livre torna-se mais forte do que nunca, sem barreiras ideológicas (o socialismo em todas as suas formas é varrido) ou geográficas (o Império Soviético, com as suas regras diferentes, desaparece).

Portanto, uma ideia de política que combina pensamento e coração (um projeto racional e um sentimento em relação ao outro), contra o mercado absoluto do fim do século XVIII e dos anos 1980, e os movimentos populares radicais desmorona.

Nos anos 1980, a Itália se torna o campo de testes para experimentar uma pós-política liderada pelo magnata da televisão Silvio Berlusconi (por sua vez, inspirado em Reagan, um ex-ator). Ele promete milhões de empregos, como vasos indestrutíveis, como o amor eterno prometido a uma namorada à noite. Se os vasos se arranham e quebram, se, de madrugada, o namoro termina, bem, mesmo assim, o vaso ainda era forte, o amor de uma noite intensa era como o de uma vida inteira, e, então, essa é a vida – como os milhões de obras que não se materializam.

A cultura política se transforma em um show. O marxismo-maximalismo era um ideal, uma contracultura que precisava de uma cultura dominante para lutar. Se a contracultura termina, não há necessidade da cultura dominante. De fato, os marxistas queriam estabelecer uma hegemonia cultural e se tornar a cultura dominante. Além disso, se a mediação entre interesses legítimos (os do capital e os dos trabalhadores, por exemplo) é supérflua, e tudo é confiado ao mercado, não há necessidade de uma cultura para prover mediação social.

Em torno do fim do comunismo, nascia a TV popular, um meio que espalha uma “não cultura” que despreza a alta cultura. Esses programas de TV tiveram um enorme sucesso porque apelavam a uma audiência que havia sido esquecida – aqueles que tinham pouca cultura, que mal liam qualquer livro.

Na Itália, essas eram as emissoras de TV comercial de Berlusconi, seguindo uma tendência que havia ocorrido também nos Estados Unidos. Essas emissoras promoviam a ideia de que a não cultura (a ignorância, a falta de leitura) era uma cultura tão legítima quanto a cultura dos livros. Era o fundamento que, no fim, levou à disseminação das “fake news”.

No entanto, Berlusconi ainda estava dentro do antigo molde político italiano – ele tinha um partido organizado, movia-se dentro da ideia de uma divisão entre esquerda e direita, em que o empreendedor devia olhar para os interesses das classes mais baixas e em que a mediação é crucial.

O Movimento Cinco Estrelas, nascido após a crise financeira de 2008, está fora desse molde – é a nova geração das políticas de direitos absolutos contra o mercado absoluto. De fato, o surgimento da ideia de que o mercado é governado por regras legítimas absolutas traz a ideia de que há direitos absolutos que não devem ser esmagados pelo mercado – os direitos humanos, os direitos das mulheres, os direitos à água etc.

Em uma atmosfera de mediação política, os direitos eram a recompensa aos deveres cumpridos (você se comporta bem e tem o direito de ser respeitado; você trabalha e tem direito a seu pagamento). Em um ambiente em que as regras do mercado para o crescimento econômico são primordiais, a ideia de “direitos” absolutos é a única defesa, e eles são as “lombadas” absolutas na corrida – irrefreável, caso contrário – do livre mercado.

Eles não estão mais ligados a deveres e responsabilidades, como havia sido durante dois séculos, mas são “humanos”, inerentes ao ser humano e universais para todos em todos os lugares. A partir disso, vamos, então, direto para o corpo, ou para a vida e para a morte; para o trabalho; para a preservação da nação; para a manutenção do status quo; para o direito à água; e para questões de identidade, etnia e assim por diante. Nem todos os direitos podem ser negociados, aqueles que são muito quentes (feitos de puras emoções e, como tais, inegociáveis) tornam-se “lombadas rápidas” da fria lógica do mercado.

É um movimento filosófico que passa da política dos ideais (feita de ideias, que vêm do cérebro, mas também do coração, ou seja, a atenção às necessidades dos outros) para a política da emoção (que vem do estômago). O ideal tem como premissa a empatia pelas motivações e pelo mal-estar dos outros; as emoções nascem e vivem por conta própria, são egoístas e possivelmente imunes às emoções dos outros.

É uma crise da política tradicional: as pessoas rejeitam a política, tanto os detentores da riqueza quanto os burocratas (padrinhos dos mecanismos do mercado ou do Estado), e as pessoas comuns “sofrem” a política.

Rachaduras na ordem internacional

No entanto, embora, teoricamente, pareça haver uma boa razão para remontar a uma época de mediação política, a inovação econômica maciça é o resultado de uma grande liberdade de mercado. Por que a Europa não tem gigantes da tecnologia, como os Estados Unidos ou a China? Porque, para ter uma empresa de tecnologia de sucesso, é preciso investir em centenas delas e, então, fechá-las imediatamente quando elas não têm um bom desempenho.

Na Europa, por causa das questões sindicais, é impossível fechar rapidamente as empresas, e os bancos, então, não querem ser sugados por possíveis fracasso. Portanto, é muito difícil iniciar novos motores de crescimento na Europa, e não há nenhuma esperança de crescimento revolucionário. As indústrias tradicionais podem melhorar o seu desempenho, mas as indústrias tradicionais também estão com um baixo desempenho.

Na Europa, na virada do milênio, o capitalismo de estilo alemão, de alianças e de grandes acordos entre as partes, acabou. Naqueles anos, em nível internacional, as novas situações também levam ao fim da política dos acordos multilaterais de acordo com os ideais políticos: a ONU, Bretton Woods, o FMI e o mercado único europeu estão enfraquecendo porque se basearam em um acordo de ideais compartilhados entre Estados.

Os reformadores tradicionais enfrentam uma crise porque reduzem o espaço para mediar. Existem as necessidades do mercado e da produção, por um lado, com necessidades absolutas às quais os outros devem se adaptar. Por outro lado, essa absolutização das necessidades do mercado – frias, não sentimentais e, por essa razão, expressadas em números – dá origem a uma absolutização dos “direitos”.

O direito do Movimento Cinco Estrelas e o futuro da política

As pessoas que rejeitam a política (considerada a serviço de “potências fortes”: homens ricos, políticos etc.) pressionam por uma revolução baseada na rejeição, na absolutização de seus próprios pensamentos e sentimentos particulares e na emoção do “exit” [saída]. Eles querem mudanças (sem conteúdo) e pedem o reconhecimento da dignidade, das leis, da especificidade ou de uma identidade particular.

Nisso, a política deixa de ser uma representação da vontade de uma parte da sociedade que tenta se comprometer com outra parte. Graças à utilização das políticas emocionais através da internet, a política se torna um megafone direto da “vontade popular”.

Hoje, o Movimento Cinco Estrelas afirma que a política parlamentar é supérflua. Essa é uma consequência das políticas ditadas pelas pesquisas de opinião diárias, parentes relativamente próximos das pesquisas online, e não pelos programas de médio e longo prazo.

O problema é que não há nenhuma cultura de referência para abordar inclusive questões básicas, e, tecnicamente, a política não pode ficar sem cultura. Isso é permissível quando há aparatos muito fortes, como nos Estados Unidos. Lá, um presidente eleito pode não ter nenhuma cultura, mas os funcionários são profissionais de carreira e podem sustentar esse peso. Mas, na Itália, onde as eleições políticas permeiam tudo, e, nos últimos 20-30 anos, o aparato estatal ficou muito enfraquecido, se os políticos não sabem governar, como o país pode avançar?

Além disso, a cultura da tradição judaico-cristã está em crise, e a relação transatlântica também está em crise, embora estas sempre tenham sido a cultura principal e a relação internacional principal.

O papa desvinculou a Igreja da necessidade de um vínculo com a tradição judaico-cristã a fim de não sobrecarregar a Igreja com essa crise cultural e para dar à Igreja uma nova vida na Ásia, lar de 60% da humanidade e da maioria do crescimento econômico.

Isso deixa ainda mais solitários os gritos desesperados de protestos por “direitos” espezinhados. E eles estão perdidos.

Mas o mercado e o Estado são dois lados da mesma moeda. Sem o Estado e as suas regras e leis, não existe um mercado justo, transparente e eficiente. Sem equanimidade e sem mediação de grupos sociais e a cobertura justa de notícias, o mercado retorna para as trocas do antigo deus grego Hermes – um sistema de roubo, pirataria, interpretação, trapaça e movimentação de mercadorias com um uso mínimo da força, mas com uma ameaça da força em ambos os lados.

Com o Estado, a sociedade e a cobertura justa de notícias, todos ganham nas trocas. Com a “troca pura” – sem a visão Estado-sociedade-opinião pública – um lado ganha, e o outro perde, o que cria ressentimento, desejo de vingança e rancor. Essa é a raiz de um potencial confronto violento futuro – desta vez mais severo do que antes.

A outra opção é eliminar o derrotado todas as vezes, o que tem outros custos e outras contraindicações. Portanto, precisamos de um novo humanismo e de um novo diálogo dentro dessas novas dinâmicas.

[Fonte: Por Artigo de Francesco Sisci, Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo, 26Out18]

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