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2016


A Justiça, Verdade e Memória:
Comissão Estadual da Verdade


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Resumo

Durante os vinte e um anos de duração da ditadura implantada no Brasil com o golpe cívico-mi-litar de 1° abril de 1964, foram cometidas inúmeras e graves violações aos direitos humanos de milhares de brasileiros e brasileiras. A partir dos dados consolidados da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, pode-se afirmar que mais de 60.000 pessoas foram sequestradas, presas ilegalmente, torturadas e, até mesmo, mortas e desaparecidas - além de cassadas, demitidas, perseguidas e exiladas. O Rio Grande do Sul, terra de Getúlio, Jango e Brizola, com forte tradição nas lutas políticas em favor do trabalhismo e do socialismo, foi um dos palcos privilegiados da furiosa repressão desencadeada já nos primeiros dias do regime ditatorial - contra os setores ligados, direta ou indiretamente, ao governo legítimo deposto, aos sindicatos, ao movimento estudantil, à universidade, ao serviço público e às profissões liberais. Desde o início os ditadores montaram um sistema repressivo quase autônomo, encarregado de reprimir brutalmente seus oponentes - reais, potenciais ou imaginários - e constituído por militares, policiais e, até mesmo, civis, muitos dos quais formados em cursos, no Brasil e no exterior, especializados em técnicas de repressão, aí incluídas a tortura, o sequestro e o homicídio. As Comissões da Verdade são instrumentos criados para recuperar, pela memória das vítimas, testemunhas e, inclusive dos agentes destas graves violações a direitos humanos, a verdade sobre este terrível período de nossa história recente, visando à realização da justiça pelos crimes cometidos. No Rio Grande do Sul, a Comissão Estadual da Verdade foi criada para auxiliar a Comissão Nacional da Verdade a apurar as violências praticadas, pelos agentes do sistema repressivo da ditadura militar, no território gaúcho, ou mesmo fora dele, mas contra seus naturais, no período entre 1961 e 1988. Este trabalho pretende apresentar, ainda que de forma sintética, as principais apurações e os resultados colhidos pela Comissão Estadual da Verdade do Rio Grande do Sul, entre sua instalação, em setembro de 2012, e o encerramento de suas atividades, em dezembro de 2014.
Palavras-chave: Memória; Verdade; Justiça; Comissão Estadual da Verdade/RS; Comissão Nacional da Verdade.

Abstract

During the twenty-one-years of dictatorship implanted in Brazil with the civil-military coup of April 1, 1964, countless and serious human rights violations were committed against thousands of Brazilians. From the consolidated data of the Amnesty Commission of the Ministry of Justice, it can be said that more than 60,000 people were abducted, illegally detained, tortured and even killed, many disappeared, or had their political mandates revoked, were dismissed, persecuted and exiled. Rio Grande do Sul, the state of Getúlio Vargas, João "Jango" Goulart, and Leonel Brizola, with a strong tradition in the political struggles in favor of labor and socialism, was one of the main theaters of furious repression triggered already in the first days of the dictatorial regime directly or indirectly against the legitimate deposed government, trade unions, the student movement, universities, the public service and liberal professions. From the outset the dictators mounted a quasi-autonomous repressive system, in charge of brutally repressing their opponents - real, potential or imaginary. The system consisted of military personnel, police and even civilians, many of whom were trained in courses in Brazil and abroad, specialized in techniques of repression, including torture, kidnapping and murder. Truth Commissions are instruments designed to recover, through the memory of victims, witnesses and even agents of these grave violations of human rights, the truth about this terrible period of our recent history, with the goal of achieving justice for the crimes committed. In Rio Grande do Sul, the State Truth Commission was created to assist the National Truth Commission to investigate the violence by the agents of the repressive system of the military dictatorship in the territory of Rio Grande do Sul, or even outside it, committed against people from this state between 1961 and 1988. This paper intends to present a summary of the main assessments and results collected by the Rio Grande do Sul State Truth Commission between its installation in September 2012 and the closure of its activities, in December 2014.
Keywords: Memory; Truth; Justice; State Truth Commission / RS; National Truth Commission.


I Conceitos básicos

1 Justiça de Transição: definição; dimensões; mecanismos

Por justiça de transição entende-se o conjunto de procedimentos, de natureza política e jurídica, judiciais e extrajudiciais, tendo por finalidade fazer ou completar a passagem de estados excepcionais, marcados pela violência e suspensão dos direitos de cidadania, para regimes democráticos e pacíficos. Trata-se de processo essencial para a restauração da democracia em nações vitimadas por guerras, externas ou civis, invasões estrangeiras ou ditaduras, com a efetivação plena dos direitos e garantias individuais e coletivos, e da normalidade institucional.

Os processos de justiça de transição devem-se desenvolver em três dimensões, a saber: adoção de políticas de punição pelos crimes e abusos praticados durante o regime de exceção (justiça); implementação de medidas de reparação aos danos - materiais, morais e políticos - deles decorrentes; e, por fim, estabelecimento de estratégias de memória, destinadas à recuperação histórica das referidas violências, em especial a partir dos relatos das vítimas, testemunhas e, também, de seus autores.

Os mecanismos adotados nos processos de justiça de transição são de variada ordem, podendo e devendo ser implementados de forma conjunta e complementar. Dentre as providências usualmente recorridas, destacam-se leis de anistia; processos judiciais; reparações; reformas legislativas e institucionais; demissões; e comissões de verdade.

1.1 Concepção contemporânea: políticas de memória versus políticas de esquecimento

O conceito de justiça de transição é relativamente recente, passando a ser adotado em diversos contextos, a partir dos anos 1980. Trata-se da superação do entendimento, até então prevalente em situações de restabelecimento da vida democrática, que davam ênfase à "conciliação nacional" - em cujo nome os delitos praticados durante os regimes de exceção deveriam ser esquecidos (ou "anistiados").

A experiência malsucedida em transições como as ocorridas na Europa, após a Guerra Civil Espanhola e a II Guerra Mundial, por exemplo, bem como em outros continentes, inspirou a criação de políticas de memória e verdade, visando trazer à luz as violências praticadas durante os regimes de exceção, inclusive com a punição de seus responsáveis, como condição para a verdadeira reconciliação das nações com seus passados.

Os processos de justiça de transição têm por finalidade, pois, superar a tradicional concepção subjacente às chamadas "políticas de esquecimento", que além de manterem sangrando as chagas abertas nos períodos excepcionais, servem para perpetuar, mesmo após o restabelecimento da democracia, instituições, leis e práticas autoritárias neles gestadas.

1.2 Processos de transição a partir dos anos 1980: América do Sul, Ásia, América Central

Os processos de justiça de transição, na conceituação contemporânea, tal que delineada acima, tiveram início e impulso ao longo dos anos 80 do século passado, na América Latina - em especial, no Cone Sul da América do Sul. Com efeito, derrubadas as ditaduras instaladas nas duas décadas anteriores - no Brasil, no Chile, no Uruguai e na Argentina -, foi desencadeada nestes dois últimos países uma série de movimentos tendentes a, de uma parte, revelar as violações a direitos humanos praticadas, contra milhares de cidadãos e cidadãs, durante os regimes de força a que foram submetidas suas populações; e, de outro lado, a responsabilizar não somente seus autores diretos, como também os indiretos - de modo particular, as chefias militares e os governantes do período.

Apesar das dificuldades iniciais, e depois de idas e vindas, o processo avançou notavelmente ao longo dos anos 1990 naqueles dois países, notadamente na Argentina, que o mantém e aprofunda ainda hoje, processando criminalmente membros de toda a cadeia de comando da ditadura, condenando de ditadores até militares e policiais de baixa patente - tarefa cumprida dentro do marco constitucional do Estado de Direito, o que é inédito em todo o mundo. Enquanto isso, no Brasil e no Chile, por razões ligadas às circunstâncias da transição das respectivas ditaduras para a normalização democrática, o processo avançou menos e de forma mais lenta - ganhando força entre nós apenas nos últimos anos, como adiante explicado.

Cabe registrar que os processos de transição vêm-se alastrando consideravelmente desde então, em várias partes do globo, desde a África até o Leste Europeu, passando pela Ásia e pela América Central. Estima-se que, hoje em dia, existam em funcionamento comissões de verdade, ou similares, em aproximadamente oitenta nações - cifra que revela bem a relevância e a atualidade da questão no panorama político mundial.

1.3 Tendências e efeitos esperados

Em decorrência, entre as tendências do fenômeno tem-se registrado a implementação de políticas públicas que levam, até mesmo, à profissionalização dos agentes envolvidos nos diferentes processos. Justiça de transição, nos dias correntes, é tema que assumiu inegável centralidade no Direito Internacional Penal e no Direito Humanitário, e de sua adoção e desenvolvimento esperam-se, como principais efeitos: (i) a conquista da verdadeira conciliação nacional, em países abalados por regimes excepcionais; (ii) a efetivação da democratização de sua vida política e social; e (iii) o pleno respeito aos direitos humanos.

Malgrado alguns bons resultados alcançados, estas metas ambiciosas apresentam dificuldades de demonstração sobre bases científicas ou empíricas, motivo pelo qual os estudiosos da matéria recomendam cautela na avaliação dos frutos das políticas adotadas, e ainda em andamento, nos diferentes países.

2 Comissões de Verdade: natureza e finalidades

Comissões de verdade são, como visto acima, importantes mecanismos para os processos de justiça de transição. Consistem em colegiados, cuja composição varia de caso a caso, destinados a reconstituir, pela memória das vítimas, testemunhas e, até mesmo, autores de graves violações a direitos humanos, a verdade histórica sobre os períodos de exceção em que estas violências foram praticadas - visando à efetivação da justiça, com a reparação dos danos praticados e a responsabilização, civil, criminal e política, dos algozes.

Este tripé - memória/verdade/justiça - sintetiza com exatidão as finalidades das comissões de verdade, cuja natureza é peculiar: não se trata de instituições de caráter policial ou judicial, e tampouco assumem feição acadêmica ou científica. As informações que estas comissões produzem, à base do depoimento de vítimas e do relato de testemunhas e, também, dos responsáveis, diretos e indiretos, pelos crimes praticados durante regimes de força - além da documentação recolhida sobre tais fatos -, embora sirvam para impulsionar ações na esfera judicial, não se confundem, assim, com aquelas necessárias para a prolação de decisões proferidas neste âmbito, sob as garantias constitucionais da prova.

E a "verdade" revelada a partir de seu trabalho, diferentemente do que ocorre com pesquisas científicas ou teses acadêmicas, não se reveste necessariamente dos critérios de validade ou objetividade típicos das mesmas - antes, e ao contrário, pode e deve ser impregnada de subjetividade e emocionalidade decorrentes da condição especial dos depoentes, em especial de sua relação com os fatos e situações por eles narrados.

II O processo de justiça de transição no Brasil

1 Peculiaridades da ditadura brasileira

Conforme adiantado acima, o processo de justiça de transição em nosso país caracterizou-se, inicialmente, pela lentidão e timidez na adoção das primeiras iniciativas de revelação das violências perpetradas no período ditatorial. Isto se deve, sobretudo, às peculiares circunstâncias que revestiram a ultrapassagem do regime excepcional e a retomada da normalidade democrática no Brasil.

Cabe recordar, a propósito, que a própria ditadura aqui instaurada em abril de 1964 distinguiu-se dos regimes de força que lhe foram contemporâneos, no Cone Sul da América do Sul. Ao contrário do que ocorreu no Chile, no Uruguai e na Argentina, o grupo de militares que derrubou o governo constitucional de João Goulart e se estabeleceu então no poder, malgrado tenha imposto desde logo a ordem autoritária que prevaleceu, sobre todos os setores da vida nacional, durante os vinte e um anos seguintes, preocupou-se em manter algumas instituições e rotinas típicas da democracia liberal - o que foi feito de forma rigidamente controlada, de modo a torná-las inofensivas e, até mesmo, caricaturais.

Assim é que a imprensa funcionava - mas sob censura; os sindicatos, depois de inicialmente fechados, foram reabertos - todavia, sob intervenção militar; os parlamentos funcionavam - voltados, no entanto, a atividades irrelevantes, destituídos que foram de poderes legislativos e de controle efetivos; havia eleições - restritas, entretanto, às cidades sem maior importância política, vedadas ademais aos executivos das capitais e das cidades situadas nas "áreas de segurança nacional" (eufemismo para as regiões metropolitanas e de fronteira), cujos titulares eram nomeados pelo governo central; os governadores dos estados eram eleitos indiretamente - por colégios eleitorais controlados rigidamente, para não permitir a indicação de políticos que lhe fossem contrários.

Para o funcionamento desse simulacro de democracia formal, os novos governantes, depois de extinguirem os partidos em funcionamento legal no país, criaram duas novas agremiações políticas: uma, para defender a situação nos parlamentos mutilados (ARENA); e outra, para exercer ali a oposição consentida e limitada (MDB).

Destarte, mediante estes artifícios, o novo regime buscava, de um lado, justificar-se no panorama internacional; e de outra parte, permitir certa descompressão controlada à sociedade civil - ao mesmo tempo em que, paulatinamente, todos os espaços de participação política foram sendo fechados, ao longo da segunda metade da década de 1960.

O último segmento que ainda reagia - basicamente, o movimento estudantil - foi definitivamente sufocado após a edição, no final de 1968, do Ato Institucional n. 5 (o famigerado AI-5), que suspendia todos os direitos e garantias, individuais e coletivos, permitindo ao governo ditatorial o exercício sem peias do poder. Em consequência, os setores mais radicais de oposição ao regime, constituídos principalmente por estudantes universitários e secundaristas, bem como por sindicalistas e profissionais liberais, passaram a atuar politicamente em distintas organizações clandestinas, algumas das quais adotaram a via armada - o que será melhor detalhado abaixo. E também na sua repressão, a ditadura brasileira diferenciou-se das congêneres sul-americanas daquela época.

Isto porque, embora se tenha constituído aqui, logo após sua instalação, um sistema repressivo violento e criminoso - que nada deixava a desejar aos das ditaduras vizinhas, e que funcionou até mesmo como modelo para suas polícias políticas - o governo ditatorial tratou de editar uma lei penal específica para incriminar seus dissidentes (a nova Lei de Segurança Nacional, Decreto-lei n. 898/68). Para isso, destinou uma parte do aparato judicial já existente ao processo e julgamento de seus opositores, reais ou potenciais - a Justiça Militar Federal, perante cujas Auditorias foram processados e julgados centenas de cidadãos e cidadãs, dados como incursos nos artigos do mencionado diploma legislativo.

1.1 Características da transição "à brasileira"

Sempre é bom reiterar, para que não paire dúvida a respeito: estas peculiares condições do estado autoritário criado em nosso país após a derrubada do governo legítimo de Jango, não o tornaram menos perverso em relação às ditaduras dos países vizinhos daquele período. Ao contrário, as características acima destacadas deixaram-no até mesmo mais eficiente e longevo que estas, permitindo ao sistema de poder instalado no Brasil em abril de 1964, o controle permanente e monitorado da sociedade - por meio do emprego de mecanismos que um de seus mentores, o general Golbery do Couto e Silva, chamava de "sístoles e diástoles", recorrendo à metáfora organicista, tão ao gosto de positivistas como ele.

Por conseguinte, também no que se refere à transição para a democracia, o regime ditatorial brasileiro seguiu caminho próprio - longo e controlado - diversamente do que ocorreu, por exemplo, na Argentina e no Uruguai. Cabe lembrar que, desde meados da década de 1970, o governo ditatorial vinha perdendo, crescentemente, o apoio parcial da sociedade civil (burguesias, oligarquias rurais e parte dos setores médios urbanos) com que contara nos anos anteriores.

As eleições de 1974 e 1978, vencidas pelo MDB, em franco crescimento, sobremodo nos estados e cidades mais importantes, política e economicamente, fizeram com que o centro de poder recorresse a medidas casuísticas e autoritárias, sem as quais não manteria a maioria parlamentar necessária para disfarçar a natureza autocrática do regime. Entre as mesmas destacam-se aquelas impostas pelo "pacote de abril" e, dentre elas, de modo especial, a instituição dos chamados "senadores biônicos" - a criação de cargos de senador, um por estado, indicados diretamente pelo governo central, ardil usado para garantir maioria congressual, o que se revelará essencial, por exemplo, em 1979, na imposição de lei de autoanistia, em episódio que será examinado com mais minúcia ao longo deste trabalho.

Pode-se dizer que, à época, a questão central colocada para os governantes militares e seus apoiadores civis diretos consistia em preparar a saída do poder de forma controlada, impedindo qualquer espécie de responsabilização, política ou jurídica, pelos abusos praticados de parte, seja deles mesmos, seja dos integrantes da "comunidade de segurança e informação" - como denominado o sistema de repressão política criado e posto em funcionamento ao longo de todo o período ditatorial.

Para tanto, socorriam-se de cuidadosa construção discursiva, destinada a obter consenso inclusive junto a segmentos oposicionistas "confiáveis" - cujo apoio, afinal, não lhes faltou. Assim é que, em 1975, assume o penúltimo ditador, o general Geisel, sob o signo da "distensão" ("lenta, gradual e consentida") - distensão que não impediu o recrudesci-mento, naquele ano, das ações repressivas criminosas, voltadas então contra o inofensivo PCB.

Já o último ditador, o general João Batista Figueiredo, é conduzido ao Planalto (indiretamente, como seus antecessores) com a tarefa de proceder à "abertura" - na verdade, como logo se viu, a passagem do poder a governantes civis escolhidos indiretamente, na forma estabelecida pelos militares, por "colégio eleitoral", de modo a não decorrerem riscos, nem a eles, nem a seus acólitos. Para tanto, durante o governo de Figueiredo, ainda antes da transição propriamente dita - que ocorreria somente em 1985, com a assunção de José Sarney à Presidência, e o estabelecimento da chamada "Nova República" -, importantes medidas foram tomadas, sempre por iniciativa e sob a condução rígida dos governantes militares e seus aliados.

Releva salientar entre tais providências a reforma partidária e, sobretudo, para os efeitos desta exposição, a chamada Lei de Anistia (Lei Federal n. 6.683/79). A seu respeito, reitere-se que - ao contrário do que costumam divulgar, falaciosamente, os grupos interessados em manter a impunidade dos responsáveis pelos crimes contra a humanidade praticados ao tempo da ditadura militar brasileira - ela não integrou a transição do regime ditatorial para a democracia; e tampouco foi fruto de qualquer negociação entre governantes e oposicionistas. Como já se referiu acima, o aludido diploma foi editado durante, e por iniciativa do último governo ditatorial. Não existiu, pois, qualquer acordo com a oposição quanto a seu conteúdo: diferente disso, o texto original, praticamente sem qualquer alteração (salvo pequeno acréscimo), terminou aprovado com vitória apertada do governo, por apenas seis votos - isto, graças aos "senadores biônicos" instituídos no ano anterior.

Portanto, foi mediante imposição governamental, resultante dos artifícios casuísticos engendrados em plena ditadura, que se logrou editar legislação, ainda vigente em nossos dias, por meio da qual, ao mesmo tempo em que se instituiu indulto limitado - e não uma verdadeira anistia - aos opositores do regime, foi conferida anistia, esta sim "ampla, geral e irrestrita", aos crimes praticados pelos integrantes do sistema repressivo político, medida extensiva, é claro, aos mandantes, inclusive os ditadores e seus auxiliares.

Somente depois disso, já garantida a impunidade, própria e de seus esbirros, ao final de seu último período, é que os militares e seus aliados permitiram a transição da ditadura para o primeiro governo civil, o que veio a ocorrer entre 1985 e 1988. E tratou-se, esta, de mais uma "transição por cima", ou "das elites", como denominado pelos estudiosos de nossa história: a exemplo do ocorrido, por exemplo, na Proclamação da República, ou na derrubada da República Velha, ou ainda no fim do Estado Novo, houve um arranjo das camadas dominantes, permitindo a substituição dos governantes de modo a "mudar para continuar tudo igual" -conforme a genial expressão de Lampedusa.

2 As etapas do processo de justiça de transição no Brasil

As características peculiares da vida política nacional, acima apontadas como responsáveis pela passagem limitada e incompleta do regime de exceção para a normalidade institucional, explicam também a lentidão e insuficiência do nosso processo de justiça de transição. De fato, enquanto nos países platinos as iniciativas para revelar os crimes das ditaduras ali instaladas, e punir seus responsáveis, se deram de forma concomitante ao restabelecimento da democracia, no Brasil foram necessários quase dez anos, desde então, para a adoção das primeiras providências naquele sentido.

Cabe recordar que, durante e ao final do governo de José Sarney, o país viu-se quase exclusivamente envolvido no debate político acerca do processo constituinte (1987/88) e da primeira eleição direta para a Presidência da República (1989). Assim, as questões relativas à memória do período ditatorial e das violências nele praticadas pelos agentes estatais não entravam na agenda política daqueles anos, senão que de forma marginal - e isto graças à militância de vítimas e familiares daqueles delitos, os quais, ainda durante a ditadura, vinham se organizando e atuando em busca de anistia e justiça.

De outra parte, estas demandas não encontravam eco junto aos po-deres instituídos - governos, parlamentos, sistema de justiça - no início da retomada da democracia. Salvo ações isoladas, nem a chamada classe política, nem as burocracias judiciárias deram a devida continuidade às denúncias dos crimes do sistema repressivo ditatorial, cuja repercussão se limitava, em geral, à parcela da imprensa.

Prevalecia no meio político, à época - e, em certa medida, até hoje - a lógica da "transição negociada", feita em nome da pretensa "reconciliação nacional", objetivo que impunha a necessidade de "olhar para frente" e "esquecer o passado". Lembre-se, a propósito, que uma parte expressiva dos dirigentes e congressistas de então era oriunda das hostes políticas que participaram ou apoiaram a ditadura; ou ainda, dos setores ditos "moderados" de sua oposição.

2.1 Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (1995)

Isto explica, portanto, que somente em 1995 tenha-se dado o primeiro passo oficial no sentido de trazer à tona e esclarecer os crimes perpetrados contra a cidadania brasileira pelos agentes da repressão política, durante a ditadura militar em nosso país - o que ocorreu pela instituição, por meio da Lei Federal n. 9.140/95, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.

Este colegiado, instituído quase oito anos após a restauração da democracia, consistiu na primeira comissão pública legalmente encarregada do reconhecimento das violências causadas, ou não impedidas pelo Estado Brasileiro, bem como de promover sua devida exposição e reparação.

Formada por pessoas de notória participação na luta pelos direitos humanos, inclusive vítimas e familiares da repressão exercida durante a ditadura, desde sua instalação aquela comissão realizou excelente trabalho, na reconstituição da verdade histórica sobre as graves violações cometidas pelos integrantes de suas agências repressivas, em especial as mortes e desaparecimentos forçados de centenas de brasileiros e brasileiras - o que se revelou fundamental para as etapas seguintes de nosso processo de justiça transicional.

2.2 Comissão de Anistia (2002)

Seu segundo marco foi a criação da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, através da Lei Federal n. 10.559/2002. Composta por pessoas indicadas pela sociedade civil organizada, e funcionando junto àquela pasta, diretamente ligada ao gabinete ministerial, ela vem atuando de forma notável, não apenas na tarefa de reparar os danos - físicos e morais, patrimoniais e sociais - infligidos a milhares de compatriotas pelos funcionários do regime militar imposto ao país em abril de 1964, mas também na promoção da verdade sobre estes crimes, ainda encobertos por décadas de políticas de esquecimento.

Orientada pela adoção de um novo conceito para a anistia - não mais concebida como ato de "perdão" estatal aos que ousaram resistir e opor-se aos desmandos dos ditadores e seus asseclas, mas, isto sim, como pedido oficial de desculpas do Estado Brasileiro às vítimas destes crimes, e/ou a seus familiares - desde 2014 a Comissão realiza periodicamente as chamadas "Caravanas da Anistia". Consistem as mesmas em cerimônias públicas, ocorridas em quase cem cidades, até o momento, durante as quais são relatadas as violências ali praticadas, e são julgados os pedidos de reparação formulados por vítimas ou parentes.

Além disso, a Comissão de Anistia financia e promove atos, seminários, obras artísticas e mostras sobre o regime de arbítrio, contribuindo também desta maneira para a reconstituição histórica e divulgação das violações a direitos humanos perpetradas pelo aparelho repressivo por ele instituído.

2.3 Comissão Nacional da Verdade (2011)

Já a criação da Comissão Nacional da Verdade, pela Lei Federal n. 12.528/2011 - e, sobretudo, sua instalação e o trabalho a partir daí realizado por ela, ao longo de mais de dois anos e meio - marca a terceira fase da justiça de transição brasileira. Sua instituição, ainda que tardia, veio atender antiga demanda dos militantes pelos direitos humanos e pela afirmação da cidadania em nosso país, especialmente das organizações da sociedade civil que, desde os tempos da ditadura, já vinham lutando por memória, verdade e justiça.

Deve-se registrar a respeito que, no dispositivo final da sentença que o condenou, no julgamento do chamado "caso Lund" (a que se fará alusão adiante), a Corte Interamericana de Direitos Humanos havia determinado que o Brasil criasse uma comissão da verdade para apurar os crimes contra humanidade praticados durante a ditadura militar.

A CNV, como doravante será aqui referida, embora tenha objetivos similares aos da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, dela se diferencia porque não visa à reparação dos danos decorrentes das violências investigadas. Seu objetivo precípuo é o de apurar "as graves violações a direitos humanos", ocorridas no passado recente do país - a saber, e como consta no diploma legal que a criou, "...torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior..." (artigo 3°, inciso II, da Lei Federal n. 12.528/2011).

Ademais, e como já se destacou acima, as comissões de verdade, destituídas de natureza policial ou judicial, não se destinam à responsabilização dos autores, diretos e indiretos, daqueles delitos. Diferente disso, sua função é a de revelar, pela memória de suas vítimas e testemunhas, e até mesmo de seus algozes, a verdade histórica sobre tais fatos, como condição para a promoção futura da justiça e, assim, da verdadeira reconciliação nacional.

Tendo em vista sua importância aos fins deste artigo, a CNV será objeto de capítulo específico, logo adiante.

III A Comissão Nacional da Verdade

1 Criação e Instalação

Criada ao final de 2011, a CNV foi instalada em 16 de maio do ano seguinte, quando seus sete membros começaram a trabalhar. Tratava-se de pessoas escolhidas pela Presidenta da República, dentre cidadãos e cidadãs "...de reconhecida idoneidade e identidade ética, identificados com a defesa da democracia e da institucionalidade constitucional, bem como com o respeito aos direitos humanos..." (artigo 2° da mencionada lei), a saber, e em ordem alfabética: Cláudio Fontelles (ex-Procurador Geral da República); Gilson Dipp (Ministro do Superior Tribunal de Justiça); José Carlos Dias (ex-Ministro da Justiça); José Paulo Cavalcanti Filho (advogado); Maria Rita Kehl (psicanalista); Paulo Sérgio Pinheiro (professor universitário); e Rosa Maria Cardoso da Cunha (advogada).

Posteriormente, dois deles se afastaram, por motivos de saúde (Gilson Dipp) ou razões de ordem pessoal (Cláudio Fontelles), e, já em 2014, foi nomeado para compor o colegiado o advogado e professor de Direito paulista Pedro de Abreu Dallari. A coordenação dos trabalhos da Comissão foi rotativa, e seu prazo de atuação, inicialmente fixado em dois anos a contar da instalação, atendendo pedido de seus integrantes, foi prorrogado até 16 de dezembro de 2014, por intermédio da Medida Provisória n. 632, de 24/12/2013.

Diante da enormidade da tarefa a ela incumbida, invencível naquele exíguo período, os membros da CNV solicitaram à Presidenta da República que instasse os Governadores a criarem, no âmbito dos Estados, comissões locais, destinadas a lhe auxiliar naquele mister.

2 Período de atuação

Ao longo dos dois anos e sete meses de sua atuação, a CNV empreendeu inúmeras ações, isoladamente ou em conjunto com as chamadas "comissões parceiras", os colegiados criados pelos Estados e, inclusive, por alguns Municípios, a fim de ajudar na reconstituição das mais graves violações a direitos humanos praticadas no país, entre 1946 e 1988.

A propósito, cabe recordar que este período tão dilatado foi estabelecido, durante a tramitação do projeto de lei enviado para criar a Comissão, por iniciativa dos setores interessados em dificultar ou impedir sua atuação - objetivo que se revelou inútil, afinal, pois evidentemente as apurações por ela desenvolvidas tiveram por foco precípuo as violências praticadas durante a ditadura militar, desde 1964 até 1985.

2.1 Atividades (resumo)

Cerca de cem audiências públicas foram realizadas, na sede da Comissão, em Brasília, ou em diversas cidades do país, durante as quais foram tomados aproximadamente mil e cem depoimentos de pessoas que foram vitimadas, ou testemunharam aquelas violações - e, também, de alguns de seus autores e mandantes.

Além disso, foram recolhidos e organizados milhares de documentos relacionados a tais fatos, bem como foram requisitados exames, perícias e vistorias de locais onde funcionaram estruturas do aparato montado durante a ditadura para reprimir seus oponentes, e onde ocorreram os crimes apurados. Logrou-se, assim, desvendar o trabalho repressivo metódico e brutal das polícias políticas que ajudaram a sustentar os governos ditatoriais.

Merecem especial destaque algumas apurações feitas pela CNV, desde a confirmação da ocorrência do sequestro, tortura e morte do ex-Deputado Federal Rubens Paiva, pelos agentes do DOI-CODI do 1° Exército, no Rio de Janeiro; até as investigações sobre as circunstâncias da morte do ex-Presidente da República, João Goulart; passando pela reconstituição circunstanciada das sevícias, mortes e desaparecimentos forçados de centenas de cidadãos, em várias partes do território nacional, com o apontamento de seus autores, diretos e indiretos - alguns dos quais, inclusive, foram convocados a depor.

Dentre estes, teve grande repercussão o depoimento prestado por Paulo Malhães, tenente-coronel reformado do Exército que integrou o CIE - o temível Centro de Informações daquela Força, órgão responsável pelos sequestros e torturas de inúmeras pessoas, algumas delas mortas. Depois de ter concordado em depor à Comissão Estadual da Verdade do Rio, à qual falou durante oito horas, no sítio em que morava, em Nova Iguaçu - mesmo local onde foi assassinado, poucos meses depois, em circunstâncias até hoje não esclarecidas -, o sinistro personagem concordou em comparecer também à sede da CNV, ocasião na qual reiterou as declarações já prestadas, admitindo cinicamente sua participação em vários e gravíssimos delitos, inclusive na organização e funcionamento da chamada Casa da Morte, em Petrópolis.

2.2 Resultados

O resultado das ações empreendidas pela CNV é altamente positivo, especialmente por propiciar a reunião, organização e divulgação de testemunhos, documentos e dados sobre as gravíssimas violações a direitos humanos perpetradas durante o estado ditatorial militar - informações que, não fora sua criação e atuação, permaneceriam dispersos nas academias, arquivos públicos e acervos privados e, sobretudo, diluídos na memória de suas vítimas e familiares.

3 Relatório e Recomendações

Em cerimônia ocorrida no Palácio do Planalto, em 10 de dezembro do ano passado - aproveitando o ensejo do Dia Internacional dos Direitos Humanos - a CNV entregou à Presidenta da República, e logo a seguir apresentou publicamente ao país, o seu Relatório Final de Atividades.

Naquele alentado documento, constituído de dois volumes e um anexo, disponibilizados também em multimídia, a Comissão listou não apenas os principais crimes praticados pelos agentes dos aparelhos repressivos, montados pelos governos ditatoriais contra os oponentes, reais ou potenciais, do regime, como também indicou seus responsáveis, diretos e indiretos; os centros de repressão e locais de detenção; bem como as vítimas daquelas violências, especialmente as de homicídio e desaparecimento forçado.

O Relatório Final da CNV possui significado maior ainda do que ser o relato circunstanciado dos delitos praticados pelos agentes dos órgãos repressivos a serviço dos governos ditatoriais em nosso país; de fato, além disso, ele consiste no pronunciamento oficial do Estado Brasileiro acerca da constituição e desenvolvimento, desde os primeiros dias após o golpe de Estado de abril de 1964, de um sistema complexo, poderoso e relativamente autônomo, voltado diuturnamente a vigiar e punir os adversários e os recalcitrantes da nova ordem autoritária então imposta à nossa nação.

Juntamente com aquele relatório, que expôs detalhadamente à cidadania brasileira as espantosas ações das agências repressivas da ditadura - típicas de terrorismo de Estado, uma vez que não eram voltadas apenas aos seus oponentes diretos, mas igualmente a todos que pudessem vir a sê-lo -, a Comissão ofereceu trinta e nove Recomendações, dirigidas aos Poderes de Estado e à Nação Brasileira.

Por meio destas, busca-se não somente impedir a repetição das gravíssimas violações reportadas no relatório, mas também remover as se-quelas das duas décadas de autoritarismo, ainda presentes entre nós. Tratam-se, estas, de leis e instituições, práticas e ideologias, gestadas e implementadas durante os chamados "anos de chumbo", e que até hoje dificultam, quando não impossibilitam, a plena efetivação da democracia no Brasil.

Neste sentido foram recomendadas, entre outras medidas: a desmilitarização das polícias estaduais; a democratização dos meios de comunicação; a educação para os direitos humanos, em todos os níveis de ensino, incluídas as academias policiais e militares; a proscrição da tortura e de todas as formas de tratamento degradante; o combate ao preconceito e à discriminação contra jovens, pobres, negros, mulheres, índios, homossexuais e transexuais; a revogação da Lei de Segurança Nacional; e a revisão, judicial e/ou legislativa, da interpretação de dispositivo da Lei de Anistia que, até o momento, vem impedindo a responsabilização criminal dos autores dos crimes de lesa-humanidade, perpetrados pelos dirigentes e membros da famigerada "comunidade de segurança e informação".

De uma maneira geral, o Relatório Final da CNV foi bem avaliado pelos segmentos sociais diretamente envolvidos com a defesa e promoção dos direitos humanos, e com a luta pela afirmação da cidadania, e por memória, verdade e justiça - os quais, diga-se de passagem, colaboraram decisivamente para sua consecução.

Com efeito, malgrado as limitações existentes - principalmente, a exiguidade do tempo estabelecido para tarefa de tal magnitude e relevância - e as dificuldades encontradas, a Comissão conseguiu atender as legítimas expectativas criadas com sua criação. Não faltaram críticas, é verdade, como as esperadas reações dos setores diretamente atingidos por suas revelações, em especial os costumeiros arreganhos dos decrépitos integrantes da direita militar, de ontem e de sempre - o que apenas indica o acerto do trabalho realizado pela CNV.

De outra parte, foram levantadas algumas restrições somente explicáveis pelo desconhecimento de sua natureza peculiar - como comissão de verdade, destinada exclusivamente à recuperação histórica, pela memória dos sobreviventes, de um período da vida nacional, ocultado por anos de políticas de esquecimento. Sendo assim, não é correto, nem justo imputar-lhe, como alguns fizeram infundadamente, qualquer responsabilidade pela permanência, aliás, vergonhosa, da impunidade pelos crimes que ela apontou ao país.

Muito ao contrário, o circunstanciado relatório que a Comissão Nacional da Verdade apresentou constitui o mais completo roteiro oficial para que os organismos competentes do Estado - nomeadamente, o Ministério Público Federal, a Polícia Federal e a Justiça Federal - possam promover as ações legalmente previstas para responsabilizar criminal-mente os autores, mediatos e imediatos, das torturas, prisões ilegais, mortes, desaparecimentos forçados e perseguições políticas infligidas a milhares e milhares de pessoas, durante os vinte e um anos da ditadura instalada no país, em abril de 1964.

IV A Comissão Estadual da Verdade do Rio Grande do Sul

1. Criação e instalação

Conforme referido acima, a Presidenta da República, atendendo pedido dos membros da Comissão Nacional da Verdade, instou os Governadores a criarem, no âmbito dos respectivos Estados, comissões destinadas a auxiliá-la na apuração das graves violações a direitos humanos praticadas em nosso país no passado recente, em especial durante a ditadura militar.

No Rio Grande do Sul, o então Governador do Estado, Tarso Genro, instituiu a Comissão Estadual da Verdade - doravante designada CEV/RS - por meio do Decreto n. 49.380, de 17 de julho de 2012. A propósito, deve-se esclarecer que aquela autoridade tinha duas alternativas quanto a seu instrumento de criação - lei ou decreto. A primeira alternativa redundaria na criação de órgão dotado praticamente dos mesmos poderes conferidos à CNV; no entanto, tal qual ocorreu com esta, o processo legislativo certamente demandaria tempo considerável - e seu formato final seria imprevisível, levando-se em conta os fatores políticos decorrentes da composição heterogênea da Assembleia Legislativa do Estado. Não se pode esquecer que tinham (e têm ainda) assento naquela Casa, políticos e partidos com forte ligação com os setores conservadores do estado, muitos deles, inclusive, participantes ou apoiadores do regime ditatorial.

Diante disso, e atento à premência do trabalho a ser realizado, o Governador Tarso Genro optou pela instituição da CEV/RS por meio de decreto, fórmula encontrada para permitir sua instalação e funcionamento, o mais rapidamente possível. Assim, de um lado os membros da nova comissão passariam a dispor apenas dos poderes da autoridade institui-dora, o Chefe do Executivo, tendo prerrogativas de requisitar documentos e a colaboração dos demais entes da Administração Pública Estadual, Direta e Indireta; quanto aos outros Poderes do Estado, autônomos, apenas poderiam pedir a colaboração de seus dirigentes.

Mas, em contrapartida, enquanto em várias outras Unidades da Federação os projetos de lei enviados pelos respectivos Governadores tiveram longa tramitação, a CEV/RS passou a atuar tão logo criada. Com efeito, instituída em julho, seus membros foram nomeados no mês seguinte e, já na segunda quinzena de setembro, instalada em sede própria, a comissão começou a trabalhar.

Foram indicados para compô-la: Aramis Nassif, desembargador aposentado; Carlos Frederico Barcellos Guazzelli, defensor público (escolhido como coordenador por seus pares); Céli Regina Jardim Pinto, historiadora e professora universitária; Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e advogado; e Oneide Bob-sin, pastor luterano e professor universitário.

A escolha foi feita nos mesmos moldes do que ocorreu na CNV, com a diferença de que os integrantes da CEV/RS prestaram serviço pro bono, disponibilizando parte de sua agenda, de maneira absolutamente graciosa, para colaborar com suas atividades. A este respeito, deve-se acrescentar que a estrutura da comissão caracterizou-se pela simplicidade, visando imprimir-lhe agilidade funcional: assim, em vez de cargos próprios (à exceção de secretária), ela dispôs basicamente da organização permanente do Estado, contando com o trabalho de Grupo de Atuação formado por servidores já lotados no Gabinete do Governador e na Casa Civil, bem como nas Secretarias de Justiça e dos Direitos Humanos, da Segurança Pública e da Coordenação do Assessoramento Superior do Governador.

Passados os primeiros oito meses de atuação, no entanto, à medida que as ações da comissão foram-se desenvolvendo, sobretudo com a intensificação da pauta de audiências, públicas e internas, seu coordenador viu-se na contingência de se dedicar integralmente a ela - o que foi possível mediante sua cedência, a pedido do Governador ao órgão de origem (Defensoria Pública do Estado), o que ocorreu a partir de maio de 2013.

Importa registrar que, no final de março do mesmo ano, por motivos particulares, ligados a doenças de familiares, o advogado Jacques Távora Alfonsin afastou-se da comissão que, desde então, passou a contar com quatro membros efetivos.

Inicialmente, a CEV/RS teve por prazo de atuação "...vinte meses contados da data de sua instalação..." (Decreto Estadual n. 49.380/2012, artigo 10, caput), coincidindo, assim, com o período bienal previsto para o funcionamento da CNV, instalada quatro meses antes. E, em decorrência da prorrogação deste último, também a CEV/RS, a pedido de seus membros, teve prorrogado seu prazo até o dia 16 de dezembro de 2014 (Decreto Estadual n. 51.183/2014).

1.1 Período investigado

O ato de criação da CEV/RS estabeleceu, como limite temporal para as apurações a serem por ela realizadas, o período compreendido entre 1° de janeiro de 1961 e 05 de outubro de 1988 (artigo 1°, do Decreto Estadual n. 49.380/2012) - diverso, pois, daquele estabelecido para os trabalhos da CNV. Isto se explica pelo fato de que as violações a direitos por motivos políticos, que marcariam todo o país após a instalação da ditadura militar, em abril de 1964, tiveram início em nosso estado dois anos antes. Ocorre que, malgrado a extraordinária popularidade granjeada pelo Governador Leonel Brizola, pela mobilização por ele iniciada e conduzida, em agosto de 1961 - a memorável "Campanha da Legalidade", que frustrou o golpe branco desencadeado após a renúncia de Jânio Quadros, visando impedir a posse de seu sucessor legítimo, o Vice-Presidente eleito, João Goulart - seu partido, o PTB, perdeu a eleição para o Executivo estadual, realizada no ano seguinte.

Em consequência, eleito o candidato conservador, Ildo Meneghetti, a partir de sua assunção ao Piratini, desencadeou-se a perseguição política aos servidores estaduais, civis e militares, ligados ao governo anterior, e que participaram do movimento da Legalidade. Por esse motivo, tais ocorrências, mesmo anteriores à deflagração do golpe de estado, fizeram parte do âmbito de apuração da CEV/RS.

1.2 Objeto das apurações

A propósito, é de se salientar que o mesmo dispositivo do decreto de sua criação, acima referido, define expressamente o objeto precípuo da comissão, qual seja: "...examinar e esclarecer as graves violações a direitos humanos praticadas no Estado do Rio Grande do Sul, sem excluir o exame de violações cometidas em outros estados da Federação e no estrangeiro, de cidadãos naturais deste Estado..." (idem, destaques nossos), no período já antes destacado.

Resta claro, pois, que a CEV/RS teve por finalidade apurar as principais violências cometidas pela repressão política, antes e durante a ditadura militar instalada em abril de 1964, no território gaúcho; e também fora dele, inclusive no exterior, quando se tratem, suas vítimas, de pessoas nascidas no Rio Grande do Sul.

Ainda no que se refere ao escopo específico das ações da comissão, o diploma que a criou arrola, em especial, "...o esclarecimento circunstanciado dos casos de perseguição política, prisões arbitrárias, torturas, assassinatos, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres que vitimaram pessoas no Estado do Rio Grande do Sul..."; bem como "... identificar e tornar públicos os locais e as instituições do Estado do Rio Grande do Sul relacionadas às práticas de violações aos direitos humanos referidas..." (Decreto Estadual n. 49.380/2012, artigo 3°, incisos III e IV, destacamos).

2 Atividades

Devidamente circunscrito acima o objeto das ações da CEV/RS, pode-se indicar, então, as principais atividades por ela desenvolvidas, durante seus dois anos e quatro meses de atuação - bem como o conteúdo, ainda que resumido, das principais apurações então por ela conduzidas.

2.1 Resumo das ações realizadas

Foram inúmeras as ações empreendidas pela comissão naquele período, relacionadas direta e indiretamente com a coleta de depoimentos e a reunião de documentos acerca das graves violações a direitos humanos praticadas, no estado ou fora dele, mas contra seus naturais, entre as datas acima indicadas. Assim, foram realizadas 60 (sessenta) reuniões, destinadas àquelas finalidades ou à sua preparação, bem como para deliberações acerca de assuntos a elas relacionados. Destas, 42 (quarenta e duas) foram ordinárias - as reuniões ocorridas em sua sede; e 13 (treze) extraordinárias, aquelas realizadas fora dela, ou mesmo na sede, mas em dias diversos daqueles previstos para as reuniões (quintas-feiras, à tarde).

Ocorreram também 05 (cinco) sessões, como denominados atos em que o coordenador recebeu e ouviu depoentes, sem a presença de seus pares, em datas diversas dos dias de reunião ordinária da comissão.

Releva destacar que a CEV/RS realizou 09 (nove) audiências públicas, 07 (sete) em Porto Alegre, e 02 (duas) no interior do estado - uma em Caxias do Sul e outra em Três Passos -, durante as quais foram colhidos depoimentos em eventos abertos ao público em geral. Também foram promovidas 27 (vinte e sete) audiências internas, ocasiões em que os testemunhos foram prestados na sede da comissão, perante seus membros.

Foram coletados 81 (oitenta e um) depoimentos, dos quais 59 (cinquenta e nove) foram dados em audiências públicas e 22 (vinte e dois) em audiências internas. Alguns depoentes falaram em duas oportunidades -em audiência pública e em audiência interna.

A comissão recebeu inúmeros documentos, muitos dos quais trazidos e entregues pelos depoentes nas audiências, públicas ou internas, em que testemunharam. E outros requisitados ou pedidos a diferentes órgãos públicos, entre os quais os seguintes: Arquivo Público do Estado; Arquivo Histórico do Estado; Arquivo Nacional e Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, além do Tribunal de Justiça e da Assembleia Legislativa do Estado.

Além dessas atividades, que constituíram as principais ações da comissão, seus integrantes participaram de diversos outros eventos, relacionados à reconstituição histórica dos crimes praticados durante a ditadura militar; da mesma forma, em várias oportunidades concederam entrevistas e publicaram artigos nos órgãos da imprensa, local e nacional, sobre seu trabalho.

Merece registro, ainda, a criação, pela Cia. de Processamento de Dados do Estado (PROCERGS), de sítio próprio da comissão na Internet, o qual funcionou como o mais importante veículo para a divulgação de suas ações, e bem assim para o relacionamento com seu público-alvo e a população em geral. Também foi criada uma página da CEV/RS na rede social virtual Facebook, o que contribuiu tanto para repercutir e ampliar as matérias divulgadas no site da comissão, quanto para sua realimentação permanente.

2.2 Dados tabulados

As informações recebidas nos depoimentos prestados à comissão, bem como aquelas constantes nos documentos que ela recolheu, foram devidamente organizadas e tabuladas, de modo a relacionar os diferentes dados concernentes às graves violações a direitos humanos apuradas -de acordo com sua natureza; época e lugar de ocorrência; vítimas e/ou testemunhas; estruturas repressivas, centros de detenção e locais de repressão; autores, diretos e indiretos, além de outras circunstâncias e situações julgadas relevantes.

As listas e tabelas elaboradas pela comissão, contendo o resumo das informações por ela recebidas, acompanharam o Relatório Final de Atividades entregue ao final de sua atuação à CNV, e que desde então passou a integrar o conjunto de documentos apresentado por esta ao país, em 10 de dezembro passado, o qual foi, posteriormente, encaminhado ao Arquivo Nacional, órgão do Ministério da Justiça, em Brasília.

A CEV/RS entregou cópia idêntica de seu relatório final ao Governador do Estado, em cerimônia pública ocorrida no Palácio Piratini, em 04 de dezembro último - e o Chefe do Executivo estadual, atendendo previsão do decreto de criação da comissão, determinou seu envio ao Arquivo Público do Estado, destino final daquele acervo, onde o mesmo permanecerá aberto à consulta de todos os interessados.

Ademais, o teor integral daquele documento, bem como as listas e tabelas contendo os dados tabulados a partir das informações nele constantes, podem ser facilmente acessados no site da comissão.

3 As principais apurações: a montagem do sistema repressivo e os momentos da repressão no RS

As apurações feitas pela CEV/RS permitiram-lhe identificar e acompanhar a constituição, já a partir dos primeiros dias após a instalação da ditadura implantada em abril de 1964, de sistema repressivo relativamente autônomo, montado progressivamente, dentro ou à sombra das instituições estatais - e cujas ações foram marcadas, desde logo, pela brutalidade e pelo arbítrio.

Com efeito, muito ao contrário do apregoado pela versão interessada dos defensores do golpe - e, até mesmo, por certas vozes consideradas autorizadas, na imprensa e na academia - imediatamente após sua deflagração, os novos governantes trataram de direcionar a ação dos organismos militares e policiais à perseguição das pessoas e grupos ligados ao governo deposto. No próprio dia 1° de abril, teve início a série de prisões de milhares de cidadãos, em todas as regiões do estado, situação que perdurou nos meses subsequentes, prolongando-se ainda nos dois ou três anos seguintes, embora com menor intensidade.

A partir dos relatos prestados por vítimas e testemunhas ouvidas nas audiências, públicas e internas, que promoveu, a comissão gaúcha pôde mapear os diferentes momentos da repressão política no Rio Grande, desde a derrubada do governo legítimo de João Goulart, bem como os alvos preferenciais em cada uma destas etapas. Assim, há uma primeira fase, que se estende da instalação da ditadura até mais ou menos 1967, período em que, ao mesmo tempo em que o aparelho repressor estadual se organiza e desenvolve, desde o começo sob liderança militar, a repressão se dirige, preferencialmente, contra as pessoas e grupos ligados ao governo derrubado, aos partidos que o sustentavam e aos trabalhadores, do campo e da cidade, e suas organizações.

Posteriormente, à medida que a ditadura foi sendo consolidada, com a permanência dos militares no poder e a progressiva restrição de todos os espaços de participação política - partidos extintos, eleições suspensas, sindicatos sob intervenção, imprensa censurada, entidades estudantis e classistas fechadas ou controladas - a base social da resistência se estreita cada vez mais, reduzida praticamente ao movimento estudantil, o qual, nos anos de 1967 e 1968, intensifica suas ações de protesto.

O recrudescimento do regime ditatorial, simbolizado pela edição do Ato Institucional n. 05 (o famigerado AI-5), em dezembro de 1968, faz com que estes oponentes passem a se organizar em agrupamentos clandestinos - alguns dos quais fazem a opção pela chamada "luta armada". A segunda etapa da repressão, que se estendeu até 1975, teve por objeto inicial o desmantelamento destas organizações, atingindo depois outros setores oposicionistas.

Há ainda uma terceira etapa, em que este sistema repressivo manteve-se presente, convivendo de forma quase latente com os dois últimos governos ditatoriais, os quais se apresentavam, tal que visto acima, como fiadores, primeiro da "distensão", depois da "abertura". Isto não impediu que, ao sabor das disputas internas do sistema de poder, volta e meia emergissem movimentos das polícias políticas do regime.

A seguir, são indicados, ainda que sucintamente, os resultados das principais apurações procedidas pela CEV/RS, a respeito de cada um destes momentos repressivos da ditadura, em nosso estado.

3.1 A primeira fase da repressão: prisões em massa de militares legalistas, militantes trabalhistas e comunistas, e de trabalhadores e sindicalistas

Conforme já foi adiantado acima, a repressão política desencadeou-se, no Rio Grande do Sul e no Brasil, já a partir dos dias seguintes à derrubada do governo de Jango. De fato, nos primeiros meses após o golpe, foram efetuadas prisões massivas, atingindo milhares de cidadãos rio-grandenses, em praticamente todas as cidades do estado.

Esta primeira fase da repressão teve por alvo inicial os militares legalistas, ou seja, os oficiais e praças, das Três Armas e da Brigada Militar, que permaneceram fiéis ao regime democrático deposto, ou que já vinham militando, antes do golpe, em apoio à frente política nacionalista e popular que levara Goulart ao poder.

E, da mesma forma, os militantes trabalhistas e comunistas que compunham ou apoiavam seu governo, bem como os trabalhadores, rurais e urbanos, e suas entidades classistas, além de servidores públicos civis, profissionais liberais, professores, estudantes universitários e secundaristas, enfim, todos os segmentos engajados na sua defesa - e de seu programa de "reformas de base" - foram objeto da sistemática perseguição desfechada assim que o governo ditatorial foi instalado.

Esta é a época das chamadas "operações limpeza", por meio das quais interventores militares, em todos os setores da vida nacional, submeteram milhares de pessoas às "comissões gerais de inquérito" (as temíveis CGIs), responsáveis por demissões, cassações e exílio em massa de cidadãos, sob a genérica e pejorativa pecha de "subversivos". Esta verdadeira "caça às bruxas" estendeu-se, inclusive, à iniciativa privada, atingindo também o mundo artístico e cultural do país.

E, aqui no Rio Grande do Sul, em especial na sua região noroeste (e também no oeste catarinense e paranaense), ocorreram episódios repressivos dirigidos especificamente contra trabalhadores rurais que, nos anos imediatamente anteriores ao golpe, participaram dos chamados "grupos de onze companheiros" - mais conhecidos por "grupos de onze". Embora seus integrantes tenham sido muito maltratados - presos ilegalmente, ameaçados e espancados -, tais grupos não passavam de associações informais de cidadãos, criadas por iniciativa de Brizola, com a finalidade de mobilizar e organizar politicamente os trabalhadores em defesa das reformas de base propostas pelo governo de Jango, em especial, a reforma agrária.

Além de ouvir vários depoimentos de pessoas que sofreram e testemunharam estas violências iniciais do regime ditatorial, a CEV/RS promoveu audiências públicas para tratar de temas específicos a elas relacionados. Assim é que organizou, em conjunto com a CNV, evento destinado a recolher narrativas de militares - das três Forças Federais e da Brigada Militar do Estado - que foram reprimidos, antes e depois do golpe de estado, tanto por sua militância política ativa em defesa do projeto nacionalista e popular, quanto por suas posições em prol do governo legítimo derrubado em abril de 1964.

Da mesma forma, a comissão realizou, conjuntamente com a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado, audiência pública intitulada "Trabalhadores gaúchos na resistência à ditadura", na qual ouviu operários e sindicalistas que foram duramente perseguidos pelo sistema repressivo político montado pela ditadura. Naquela oportunidade, colheu-se o depoimento de um líder portuário de Rio Grande, hoje octogenário, que narrou pormenorizadamente ocorrência ainda pouco conhecida - a prisão de dezenas de pessoas, no próprio dia 1° de abril de 1964, no navio "Canopus", onde permaneceram presas por cerca de três semanas, em deploráveis condições.

A comissão também ouviu os relatos de pessoas reprimidas no interior do estado, logo após a instalação do governo ditatorial. Em Caxias do Sul, em ato realizado com a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Câmara de Vereadores, foram ouvidos trabalhadores e sindicalistas presos nos primeiros meses depois do golpe.

E em audiência promovida com a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, na cidade de Três Passos, foram ouvidos ex-integrantes dos "grupos de onze", não apenas da região, mas também do oeste catarinense.

A partir dos testemunhos prestados, tanto nestes encontros públicos quanto em sua sede - além da profusa documentação reunida sobre o período -, a CEV/RS pôde constatar que esta primeira leva da repressão política atingiu expressivo contingente da população gaúcha. Pode-se estimar em milhares o número de pessoas que foram presas, cassadas, demitidas e exiladas, nos três primeiros anos da ditadura, somente em nosso estado.

Foi possível observar, igualmente, a rápida organização do aparato repressivo que, nos anos seguintes, seria continuamente aperfeiçoado, especializando-se na vigilância e perseguição aos recalcitrantes à nova ordem ditatorial. No Rio Grande do Sul, depois de alguma vacilação inicial, o sistema foi estruturado a partir do DOPS - Departamento de Ordem Política e Social -, organismo que, mesmo originário da estrutura administrativa estadual, desde logo foi posto sob comando militar.

Importa lembrar, a propósito, que o golpe militar já vinha sendo preparado há tempos, desde antes da crise que culminou, em 1954, no suicídio de Getúlio Vargas. Assim, não é de estranhar que inúmeros oficiais das Forças Armadas, e também das Forças Públicas e das Polícias dos Estados, antes da deflagração do putsch, já tivessem seguido cursos, no país e no estrangeiro, dirigidos especificamente à repressão política.

São estes agentes que passaram a se encarregar, imediatamente, da tarefa de vigiar e punir os segmentos sociais ligados ao governo trabalhista deposto, ou a seus apoiadores, em todo o país e, de modo muito especial, no Rio Grande do Sul. Não se deve esquecer que, além de Ge-túlio, Jango e Brizola serem naturais do estado, as organizações trabalhistas e sindicalistas eram fortemente enraizadas aqui, onde, ademais, era muito ativa a militância de socialistas e comunistas.

Outra particularidade do Rio Grande que, igualmente, ajuda a explicar as prisões massivas deflagradas logo após a instalação do regime ditatorial, é a significativa presença em seu território, então e, aliás, ainda hoje, de grandes efetivos militares, sobretudo do Exército Brasileiro, por razões geopolíticas, dada a proximidade com os países do Prata.

Não admira, pois, que as ações repressivas desencadeadas tão logo os militares golpistas chegaram ao poder, tenham atingido milhares de cidadãos em todo o estado: o nítido propósito da fúria punitiva das novas autoridades era o de estancar e impedir qualquer possibilidade de reação, em um ponto do país extremamente sensível, do ponto de vista político.

Assim, como dito, já nos primeiros dias de abril de 1964, se deram as prisões de centenas de pessoas, efetuadas em cidades pequenas e médias do estado, além da capital, é claro. Seguia-se então um protocolo, a indicar que havia método e organização na repressão: depois de alguns dias nas delegacias ou quartéis das localidades interioranas, os presos eram levados a Porto Alegre, onde permaneciam presos por algum tempo, submetidos a interrogatórios, quase sempre acompanhados de tortura.

O principal centro de detenção, na capital gaúcha, usado ao longo de todo aquele ano, era o recém inaugurado SESME (Serviço Especial do Menor, depois FEBEM e hoje FASE), no Morro de Santa Tereza. Para se ter uma ideia da proporção atingida por estas prisões, havia ali uma população, permanente e rotativa, de duzentos a trezentos presos - os quais, de regra, como dito acima, depois de ouvidos e detidos por algum tempo, eram libertados e mandados embora.

Malgrado esta primeira fase da repressão política não tenha merecido, ao que parece, o mesmo destaque comumente dado à etapa seguinte, ela atingiu um número bem mais elevado de pessoas, no estado e no país. Da mesma forma, embora os métodos utilizados pelas polícias políticas da ditadura tenham-se aperfeiçoado com o tempo, como acima lembrado, as ações punitivas dos seus primeiros tempos foram também marcadas pela violência - seja pelo método utilizado nas prisões (verdadeiros sequestros), seja pela tortura que acompanhava, sistematicamente, os interrogatórios dos presos.

A propósito da virulência desta repressão inicial, a CEV/RS fez questão de registrar, na audiência realizada, em conjunto com a CNV, para ouvir os militares legalistas perseguidos pelo regime ditatorial, os relatos acerca da morte do coronel-aviador Alfeu Alcântara Monteiro, ocorrida na Base Aérea de Canoas, logo no dia 04 de abril de 1964.

Este oficial nacionalista tivera participação ativa durante a Legalidade, ajudando a impedir o cumprimento da ordem de bombardeio do Palácio Piratini e da Praça da Matriz, dada pelos golpistas de agosto de 1961, e comandava a base quando, já instalado o governo ditatorial, ao receber as novas autoridades da Aeronáutica, enviadas para assumir o comando, foi metralhado nas costas pelo também coronel Roberto Hipólito da Costa, vindo a falecer em consequência.

3.1.1 O "caso das mãos amarradas"

Outro episódio de extrema brutalidade ocorrido neste primeiro momento da repressão política em nosso estado, e que mereceu especial atenção da CEV/RS, foi o chamado "caso das mãos amarradas" - a morte por afogamento do sargento Manoel Raymundo Soares, militar cassado do Exército Brasileiro, que fora preso, no início de 1966, em Porto Alegre, onde militava clandestinamente na preparação de contrainsurgência.

Apesar de se tratar de fato relativamente conhecido, que chocou a opinião pública a ponto de, em plena ditadura, ter provocado a instauração de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa do Estado, os membros da comissão gaúcha entenderam que, tanto por sua relevância histórica quanto por seu caráter trágico, ele necessariamente deveria fazer parte do relatório circunstanciado das graves violações a direitos humanos praticadas em nosso estado, durante o período ditatorial.

Graças a esta decisão, foi possível trazer novas luzes sobre as circunstâncias que revestiram a prisão, tortura e morte do desditoso militar, cujo corpo foi encontrado boiando, com as mãos atadas às costas, no final de agosto de 1966. Primeiro, foi reunida farta documentação sobre o tema, a começar pelo relatório da CPI do Parlamento gaúcho, que corajosamente indiciou como autores, diretos e indiretos, dos crimes constatados, as autoridades responsáveis pelo sistema de segurança pública do Estado, além de agentes do DOPS estadual.

A isso se somou a sentença, confirmada em grau de apelação no Tribunal Regional Federal da 4ã Região, que condenou civilmente a União pelos danos infligidos à viúva do infeliz sargento, em decorrência de sua morte. E, também, o chamado "Relatório Tovo", as conclusões de inquérito policial independente, elaboradas por bravo Promotor de Justiça, designado para acompanhar as investigações procedidas pela Polícia Civil, deflagradas quando ainda não se conhecia a identidade do morto - e antes, pois, da tentativa grotesca das autoridades militares em ocultar a verdadeira causa da morte da vítima.

Além de reunir e organizar estes documentos, a comissão trouxe ao estado, para depor em audiência pública, Araken Vaz Galvão, companheiro de armas e amigo de Manoel Raymundo, que com ele participara ativamente do "movimento dos sargentos", como foi conhecida a ativa militância política de praças, antes do golpe militar - razão pela qual ambos foram cassados logo nos primeiros dias após o golpe, caindo em seguida na clandestinidade.

Nesta condição é que vieram para Porto Alegre, onde se dedicavam à preparação de levante militar organizado pelo Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), sob a inspiração e liderança política de Leonel Brizola, exilado em Montevidéu. Em 1965, Araken chegou a ser preso, passando alguns meses no presídio improvisado na Ilha das Pedras Brancas, situada entre Porto Alegre e Guaíba, de onde saiu por força de habeas corpus.

No começo do ano seguinte, delatado por agente infiltrado no movimento, foi a vez de Manoel Raymundo ser preso. E mesmo o tendo torturado barbaramente nas dependências do DOPS gaúcho, seus algozes não obtiveram dele as informações que pretendiam, terminando por deixá -lo encarcerado por cinco meses na referida ilha.

Dali eles o retiraram, em 13 de agosto daquele ano, simulando sua soltura - quando, na verdade, levaram-no para ser submetido a sessões de afogamento ("caldos") a bordo de um barco, no rio Jacuí, próximo à capital, do que redundou, provavelmente por "acidente do trabalho", o rompimento da corda pela qual estava preso, e sua consequente morte, afogado.

As apurações feitas pela comissão acerca do "caso das mãos amarradas", como este trágico acontecimento passou para a história, apontam para a existência em nosso estado, ainda antes de passados dois anos do golpe de Estado, da estrutura repressiva que seria aperfeiçoada e ampliada ao longo das décadas de 60 e 70 do século passado, característica de terrorismo de Estado - marcado por sequestros e torturas, desaparecimentos e mortes, em ações sistemáticas dirigidas, não apenas contra os oponentes do regime, mas também contra seus familiares, conhecidos e, até mesmo, meros suspeitos.

Além do mais, ao revelar as bárbaras sevícias infligidas ao longo de vários meses contra indefeso cidadão - preso ilegalmente, torturado e morto por policiais e militares, com o emprego de instalações e equipamentos públicos -, o episódio traz outra notável contribuição para a re-constituição histórica do período.

É que ele desmente certa versão, falsa e cínica, de que os governos ditatoriais teriam apenas "reagido" à ação dos "terroristas", na década de 1970 - quando é certo que, assim que chegaram ao poder, após derrubar o Presidente da República legitimamente eleito, seus dirigentes trataram de implantar e fazer funcionar um sistema, organizado junto às instituições estatais, de forma quase independente, destinado a reprimir criminosamente os setores sociais, real ou potencialmente resistentes ao regime de força que impuseram ao país.

3.2 A segunda fase da repressão: "Porto Alegre, anos de chumbo"

A segunda fase da repressão política em nosso estado, durante a ditadura militar, foi objeto de apuração específica da CEV/RS, tendo por tema a série de prisões desencadeadas, desde o final dos anos 1960 e até a metade da década seguinte - episódios por ela batizados de "Porto Alegre, anos de chumbo".

Cabe lembrar que este período marca, em todo o país, o auge da atuação da "comunidade de segurança e informação", como o regime designava a constelação de organismos militares e policiais, voltados precipu-amente à vigilância e punição de seus adversários - reais ou potenciais.

Durante estes anos, ocorreu a contínua especialização dos órgãos punitivos, e do pessoal recrutado para integrá-los, bem como o aperfeiçoamento de seus métodos de ação, inclusive aqueles introduzidos do exterior - em especial, tortura, sequestro, morte e desaparecimento forçado das vítimas.

As ações repressivas desencadeadas nesta época dirigiram-se sistematicamente contra os grupos clandestinos formados, conforme se viu acima, basicamente por estudantes universitários - mas também por profissionais liberais, servidores públicos e trabalhadores - inconformados com o fechamento gradual de todos os espaços de participação política.

Como também lembrado antes, alguns destes organismos tinham feito a opção pela via armada. A propósito, é interessante notar que, apesar de sua presença no Rio Grande do Sul, até o ano de 1969 não se registraram por aqui as "expropriações", denominação que seus membros davam aos assaltos a estabelecimentos bancários e comerciais, mediante os quais buscavam financiar suas ações. Isto se explica pela decisão de não chamar a atenção do aparato repressor, a fim de deixar o território gaúcho, altamente estratégico por sua posição geográfica, livre para a entrada e a saída do exterior, de pessoas, armas e material.

No entanto, a situação extremamente difícil a que foram sendo submetidos no centro do país, em virtude do paulatino cerco empreendido pelas polícias políticas da ditadura, fez com que alguns daqueles organismos se voltassem ao estado, onde, em conjunto com militantes aqui residentes, a partir de meados daquele ano, passaram a também praticar ações de expropriação, sobretudo de bancos.

As principais organizações de luta armada atuantes no país e no Rio Grande, neste período, eram: VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolu-cionária-Palmares); VPR (Vanguarda Popular Revolucionária); ALN (Aliança Libertadora Nacional); e o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Houve também um pequeno grupo, de atuação meteórica e limitada ao estado, surgido de dissidência da ALN - tratava-se do M3-G (Marx, Mao, Marighella-Guevara).

Atuavam também na clandestinidade, mas voltados à organização e mobilização políticas da população, entre outros agrupamentos, a AP (Ação Popular)] o POC (Partido Operário Comunista)] e o PC do B (Partido Comunista do Brasil) - o qual, embora não tivesse optado pela via armada nas cidades, tentou sem sucesso promover a guerrilha rural na região do Araguaia, no norte do país, no início da década de 1970.

Depois de alguns assaltos a bancos e carros pagadores, realizados no segundo semestre de 1969, no início do ano seguinte ocorrem as duas maiores ações armadas realizadas no território gaúcho, a saber: em 18 de março, o exitoso roubo praticado contra a agência do Banco do Brasil, em Viamão, empreendido em conjunto pela VAR-Palmares, o M3-G e a FLN (Frente de Libertação Nacional), grupúsculo local; e logo a seguir, em 05 de abril, a malsucedida tentativa de sequestro do cônsul estadunidense em Porto Alegre.

Estes dois fatos se relacionavam, de alguma maneira: o pessoal da VPR emprestara armas para seus companheiros da VAR-Palmares executarem o primeiro deles. E, seja em razão de sua gravidade, seja também pela importância da autoridade estrangeira envolvida na segunda delas, estas ocorrências foram responsáveis pela vinda a Porto Alegre, para assumir a condução das investigações, de dois agentes do CIE -Centro de Informações do Exército - especialmente treinados, inclusive no exterior.

Tratava-se de Paulo Malhães e Clodolvino Cabral, respectivamente capitão e sargento do Exército Brasileiro, cuja permanência no estado, nos quatro ou cinco meses seguintes, foi responsável pelo início do des-baratamento de todos os grupos de oposição clandestina que aqui agiam. Eles eram lotados no Rio de Janeiro, onde participaram, imediatamente antes de virem ao Rio Grande, da repressão ao comando nacional da VPR - e, em função disso, já tinham conhecimento de que o frustrado seques-tro do diplomata ianque fora obra de militantes daquela organização, embora desconhecessem os nomes de seus autores.

A partir dos depoimentos de vários militantes que participaram das ações em tela, a CEV/RS logrou estabelecer que os agentes do CIE, acima indicados, trouxeram consigo, e introduziram em nosso estado, em abril de 1970, a máquina de ministrar choques elétricos - apelidada jocosamente pelos policiais de "maricota" - cuja utilização, em conjunto com os tradicionais métodos de tortura, em especial, o "pau de arara", resultou na dizimação, um a um, dos organismos de resistência clandestina no estado, naquele e nos dois anos seguintes.

Consistia tal engenho em uma bobina, semelhante ao telefone de campanha usado pelos militares, a qual, acionada por uma manivela, transforma a energia cinética em elétrica, podendo disparar cargas com elevada voltagem - mas baixa amperagem. Este detalhe, conforme minu ciosamente explicado à comissão por um dos depoentes, então estudante de Química, permitiu a larga utilização desta técnica de martírio pelos esbirros da ditadura, com grande vantagem em relação à rede elétrica instalada - caracterizada pela amperagem elevada, o que, associado à alta voltagem, implica grande risco de morte ao supliciado.

Paulo Malhães - no longo depoimento prestado à Comissão Estadual da Verdade do Rio em 2014, em seu sítio em Nova Iguaçu, local em que veio a ser morto alguns meses depois, em circunstâncias até hoje não esclarecidas - confirmou a existência dos fatos narrados à comissão gaúcha, em mais de uma dezena de testemunhos, sobre sua atuação aqui, naqueles meses. Inclusive sua passagem por Três Passos, aonde acorreu depois de, mediante tortura a presos, ter obtido informações sobre a instalação no interior daquele município, junto à fronteira da Argentina, de base tática da VPR, a qual foi desmantelada então, em episódio repressivo que também foi objeto da audiência pública ali realizada, e acima referida.

Malhães se jactava, aliás, de que a missão que cumpriu à época no território gaúcho foi seu melhor trabalho; e que o delegado de polícia Pedro Seelig, principal operador do DOPS estadual naqueles anos, foi seu melhor discípulo. O fato é que, nos meses em que chefiou as ações repressivas no Rio Grande do Sul, a partir daquele órgão, o oficial carioca e sua equipe desmantelaram, progressivamente, os agrupamentos armados locais antes mencionados - VPR, VAR-Palmares e M3-G -, cujos membros resultaram presos, ou tiveram que fugir, antes do final de 1970.

O mesmo se diga dos integrantes das demais organizações políticas que agiam na clandestinidade, o POC e outros grupos menores. E, nos dois anos seguintes, já bem treinados por seu mentor, os agentes do DOPS gaúcho, sob a chefia do então major Átila Rohrsetzer, e liderados pelo delegado Seelig, voltaram sua fúria repressiva contra os militantes da AP e do PC do B, organizações que, a exemplo das demais, foram também destruídas.

Em consequência, nos anos de 1973 e 1974, a oposição dita radical ao regime ditatorial estava praticamente extinta no estado: seus membros estavam presos, foragidos, exilados, ou mesmo, em alguns casos, mortos. Contudo, o apetite deste sistema punitivo quase autônomo, em breve seria saciado com nova razia - desta feita voltada contra o inofensivo Partido Comunista Brasileiro, cujos membros, depois de reprimidos na primeira fase da repressão, vinham sendo deixados de lado, até mesmo porque sua direção era absolutamente contrária à luta armada, e pregava a oposição consentida, dentro dos limites do MDB.

A nova e violenta investida foi motivada pelas disputas internas do regime, após a assunção do general Geisel à Presidência da República, e teve início no final de 1974, quando foi "estourada" uma gráfica do chamado "Partidão", em São Paulo. A partir daí foram desencadeadas centenas de prisões de seus militantes ou simpatizantes, nas principais cidades do país. Em nosso estado, em meados de 1975, cerca de trinta pessoas foram presas, na verdade sequestradas pelos integrantes do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), organismo repressor ligado diretamente ao Exército, e que até então não tivera maior protagonismo por aqui.

Estes episódios foram relatados à CEV/RS na audiência pública realizada, em conjunto com a secção local da Ordem dos Advogados do Brasil, para apurar a atuação dos advogados gaúchos, e de seu órgão de classe, na defesa dos cidadãos perseguidos pela ditadura. E constam também de profusa documentação reunida, em especial, a respeito de um caso extremo de violência, que teve por vítima um dos militantes comunistas presos então - Hilário Gonçalves Pinha - que sobreviveu, milagrosamente, aos gravíssimos ferimentos que lhe foram causados nas sessões de tortura a que foi submetido pelos agentes do DOI-CODI.

Esta etapa da ação dos organismos repressivos em nosso estado, como já foi dito, caracterizou-se pela sistemática brutalidade. Com efeito, estima-se que se tenham efetuado, no período, mais de trezentas prisões - sendo que, destas, pouco mais de sessenta visaram militantes; as restantes tiveram por alvo seus familiares, amigos ou simplesmente conhecidos. Esta característica, conforme também já foi ressaltado antes, marca a atuação das polícias políticas do regime como típicas ações de terrorismo de Estado - uma vez que não se voltavam apenas aos oponentes reais do regime, mas também a todos os setores sociais potencialmente recalcitrantes à ordem imposta.

Além do mais, sequestros, prisões ilegais e torturas eram métodos permanentes de ação. E, se necessário, recorria-se à morte ou ao desaparecimento forçado de suas vítimas.

3.2.1 A morte do "Herzog gaúcho"

A este respeito, importa referir que a comissão gaúcha apurou, igualmente, a morte de um preso político, até hoje não suficientemente esclarecida - tratada, à época, como suicídio, no que ficou conhecido, por sua semelhança com o que ocorreu, cinco anos depois, com o jornalista paulista morto, como "o caso do Herzog gaúcho".

Tratava-se, a vítima, de Ângelo Cardoso da Silva, motorista de táxi que contava, quando morreu, com apenas vinte e sete anos de idade. Ele era morador da Vila Santa Isabel, bairro de Viamão com grande tradição operária, e em virtude de sua amizade com os vizinhos Dario Vianna dos Reis e Jorge Fischer Nunes - antigos militantes trabalhistas, o primeiro deles tenente reformado do Exército Brasileiro, veterano da malograda "guerrilha de Caparaó" - integrou-se com eles ao M3-G.

Ângelo já participara, com seu táxi, de algumas ações de expropria-ção a bancos, e teve atuação importante no grande assalto praticado, em conjunto com a VAR-Palmares, contra a agência viamonense do Banco do Brasil, no dia 18 de março de 1970. Durante as investigações do ataque, ele foi preso, junto com seus vizinhos e outros companheiros daquela ação - sendo submetido, assim como os demais, às sessões de torturas comandadas por Malhães, nas dependências do DOPS estadual.

Posteriormente, diante do número elevado de presos, à medida que os interrogatórios findavam, os presos eram levados ao Presídio Central de Porto Alegre, usado à época como local de detenção provisória. Foi o que ocorreu com Ângelo, que teria sido encontrado morto, enforcado em sua cela, pelos carcereiros que, alegadamente, ali lhe foram levar o café da tarde, pelas 16 horas do dia 22 de abril de 1970. O óbito foi atribuído de imediato a suicídio, em decorrência do que foi instaurado inquérito pela Polícia Civil do Estado, no próprio dia do ocorrido. A necrópsia foi realizada no dia seguinte, mas, estranhamente, o inquérito não tramitou durante os três anos e meio seguintes.

Aliás, reside aí a primeira circunstância indicativa de se estar presente a mais um fato típico do que se convencionou chamar "falso suicídio". Com efeito, tratando-se de preso político, objeto de procedimento aberto por organismo policial da União, a propósito de crime contra a segurança nacional - de competência de uma justiça federal, pois, à qual aquele deveria ser remetido, como o foi posteriormente - evidentemente sua morte também deveria ser ali investigada. Não havia por que abrir inquérito policial junto a órgão estadual, absolutamente destituído de competência legal para apurar a morte do preso - a menos que se pretendesse impedir sua repercussão, o que certamente ocorreria se ela viesse à tona no processo a ser aberto, contra os demais presos, perante a Auditoria Militar Federal.

A CEV/RS reuniu importantes elementos documentais sobre o fato, destacando-se o referido inquérito policial, arquivado junto à Justiça Estadual; e, sobretudo, minucioso trabalho acadêmico realizado sobre as circunstâncias em que aquele expediente foi encontrado por estudantes do Curso de História da UFRGS, trabalho este acompanhado de estudo procedido por médico legista, apontando as incongruências entre os achados periciais e a conclusão do laudo necroscópico - evidenciando a inverossimilhança da hipótese de suicídio, pressurosamente levantada pelas autoridades policiais responsáveis pela prisão da vítima.

Além disso, a comissão ouviu o relato dos referidos acadêmicos, de militantes que estiveram presos com o desditoso jovem, e das filhas do tenente Dario Reis e de Jorge Fischer Nunes - depoimentos que a ajudaram a reconstituir as circunstâncias que revestiram a prisão, tortura e morte de Ângelo Cardoso da Silva.

Todo este material, além de compor o relatório final da CEV/RS, foi entregue pessoalmente por seu coordenador a agentes do Ministério Público Federal, atendendo a requisição dos mesmos, a fim de instruir inquérito civil instaurado pelo órgão acerca da morte de Ângelo, em razão dos veementes indícios de falsidade da versão oficial que lhe foi dada, ainda durante a ditadura.

3.2.2 As prisões em massa em São Borja (1969)

A comissão gaúcha trouxe a lume outro episódio repressivo, até então desconhecido, que teve lugar na cidade fronteiriça de São Borja, no segundo semestre de 1969. Trata-se das prisões, seguidas de torturas, de quase duzentos cidadãos acusados de "subversão", efetuadas ao longo daqueles meses, por determinação de autoridades militares federais, em quartéis daquela cidade, principalmente nas dependências do 2° Regimento de Cavalaria.

Estes fatos foram levados ao conhecimento da CEV/RS por iniciativa de um dos presos, o advogado Dino Lopes, ex-vereador naquela comuna, o único deles, aliás, que resultou processado e condenado pela Auditoria Militar Federal de Santa Maria - e que, em virtude das sevícias que lhe foram infligidas, perdeu a visão do olho direito.

A partir da profusa documentação por ele enviada, comprobatória dos fatos narrados - instruída, inclusive, pelas cópias do processo que moveu, com êxito, junto à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, que reconheceu e reparou os danos decorrentes das violências de que foi vítima, assim como a um de seus companheiros de prisão -, a CEV/RS promoveu audiência pública, em sua sede, para colher seu minucioso e impressionante relato.

As graves violações de direito a que foi submetido o mencionado cidadão - além da prisão ilegal e das sevícias sofridas, ele foi obrigado a exilar-se no Uruguai, de onde retornou ao Brasil, para cumprir a pena que lhe foi imposta, diante de duas tentativas de sequestro pela polícia uruguaia, em ações características da chamada "operação Condor" - constituem mais uma das tantas evidências de que, nesta segunda fase, a repressão política em nosso estado (e, de resto, em todo o país) não obedecia quaisquer limites.

3.3 Um episódio de repressão "tardia": o cerco militar ao acampamento da Encruzilhada Natalino (1981)

Logo no início de seus trabalhos, e por iniciativa de Jacques Távora Alfonsin, que então ali ainda atuava, a CEV/RS ouviu interessante depoimento acerca de um caso de repressão "tardia" - o cerco militar procedido, em julho e agosto de 1981, ao acampamento dos trabalhadores rurais sem terra iniciado no ano anterior, na localidade conhecida como Encruzilhada Natalino, situada entre os municípios de Sarandi e Ronda Alta, na região do Planalto Médio gaúcho.

Na detalhada narrativa que prestou à comissão, o Pe. Arnildo Frit-zen, pároco local, única pessoa autorizada pelos militares a entrar e sair do acampamento sitiado, foram descritas as pressões terríveis, verdadeiras torturas psicológicas infligidas às centenas de famílias de camponeses - ali acampadas para exigir das autoridades, estaduais e federais, o assentamento em fazendas da região, de propriedade do Estado, arrendadas então a particulares.

A abusiva ação repressiva, dirigida até mesmo contra crianças, mulheres e idosos, foi conduzida e comandada por notório agente da comunidade de segurança e informação - o então major do Exército Brasileiro, Sebastião Rodrigues de Moura, mais conhecido pela alcunha de Curió -, o qual participara, no início da década anterior, da campanha militar desfechada contra a chamada "guerrilha do Araguaia". E que viria a liderar, anos depois, o movimento dos garimpeiros de Serra Pelada, no sul do Pará, onde consta que vive até hoje.

Trata-se de rico depoimento, até aí praticamente inédito, sobre fatos que, além de sua inequívoca relevância histórica - relativos à luta das organizações camponesas pela reforma agrária, em plena ditadura -, são reveladores da presença, ativa e vigilante, do sistema repressivo por ela montado, ainda durante seu último período, e apesar das proclamadas intenções de seus governantes, no sentido de promover a "abertura".

4 Relatório Final de Atividades

Consoante adiantado acima, cumprindo determinação expressa do ato de sua criação, a comissão gaúcha da verdade enviou à CNV o registro de todos os depoimentos e documentos que recolheu, ao longo de sua atuação, acerca das graves violações a direitos humanos praticadas, no território estadual e, também, fora dele, até mesmo no estrangeiro, mas contra seus naturais, pelos agentes do sistema repressivo ditatorial, no período entre 1° de janeiro de 1961 e 05 de outubro de 1988.

Ademais, e como também já mencionado, ela entregou ao Governador do Estado, em cerimônia pública realizada em 04 de dezembro de 2014, seu Relatório Final de Atividades - acompanhado dos mesmos elementos anteriormente remetidos à CNV. Neste documento foram arroladas e sintetizadas as principais apurações desenvolvidas pelo colegia-do, a saber, e na ordem cronológica dos fatos apurados: a repressão aos militares legalistas; a repressão aos integrantes dos "grupos de onze"; o "caso das mãos amarradas"; Porto Alegre, "anos de chumbo"; a morte do "Herzog gaúcho"; as prisões massivas em São Borja, em 1969; e o cerco militar ao acampamento da Encruzilhada Natalino.

Constam também deste relatório as listas e tabelas elaboradas a partir das informações colhidas pela comissão, cruzando os dados relativos às violências reportadas - em especial, sobre a natureza e época das violações; vítimas e testemunhas; autores, diretos e indiretos; estruturas, locais de detenção e centros de repressão.

Todo este material, além dos registros físicos e, também em meio audiovisual, dos depoimentos prestados e das audiências públicas, das atas de reuniões e da relação de documentos recebidos, foram depositados no Arquivo Público do Estado, onde se espera seja colocado à disposição de toda a cidadania do estado.

Ademais, e como também já dito antes, praticamente todo o acervo da comissão pode ser acessado, eletronicamente, em seu sítio da Internet: comissão estadual da verdade-rs/atividades/relatório final de atividades |1|.

4.1 Recomendações da Comissão

Assim como ocorreu com sua congênere nacional, a comissão gaúcha, ao entregar seu relatório final, apresentou igualmente Recomendações, dirigidas à União Federal e, em especial, ao Estado do Rio Grande do Sul, elaboradas por seus integrantes, em cumprimento à disposição expressa do decreto que a instituiu.

Trata-se de medidas destinadas, de uma parte, a dar continuidade ao processo de justiça de transição brasileiro, o qual, malgrado tardio e lento, ganhou grande impulso e visibilidade nos últimos anos; e, de outro lado, a remover as sequelas institucionais, legais e ideológicas da ditadura militar imposta ao país durante vinte e um anos - e que impedem, até hoje, a plena efetivação da democracia entre nós.

Estas providências foram divididas, conforme sua natureza e finalidade, entre aquelas destinadas ao processo de justiça de transição; as relativas às leis e instituições do país; as concernentes ao ensino e à memória; e finalmente, as que dizem respeito à política de comunicação.

Dentre as dezesseis ações recomendadas pela CEV/RS aos Estados Brasileiro e Rio-grandense, releva destacar as seguintes: recriação por lei e institucionalização permanente, nas estruturas administrativas, federal e estadual, das comissões de verdade, compostas por membros oriundos dos órgãos públicos e da sociedade civil, a fim de prosseguir na apuração das graves violações a direitos humanos praticadas no passado recente do país e do estado; revisão legal e/ou judicial do dispositivo da Lei de Anistia invocado para garantir a impunidade dos responsáveis pelos crimes de lesa-humanidade, cometidos pelos agentes do sistema repressivo político montado pelos governos ditatoriais (Lei Federal n. 6.683/79, artigo 1°, § 1°); desmilitarização das polícias estaduais; revogação ou declaração da inconstitucionalidade da Lei de Segurança Nacional (Lei Federal n. 7.170/83); alteração do currículo das academias militares e de polícia, com a introdução de disciplinas e conteúdos de justiça de transição, direitos humanos e prerrogativas da cidadania brasileira; ampla divulgação, na rede de ensino e pelos meios de comunicação social, dos resultados das apurações das comissões de verdade.

V Conclusões

1 A revelação das verdades escondidas e o fim dos mitos sobre a ditadura brasileira

Apesar das dificuldades com que se deparou - sobretudo a exiguida-de do tempo de que dispôs para realizar tarefa tão grande quanto espinhosa -, a Comissão Estadual da Verdade do Rio Grande do Sul trouxe importantes contribuições à reconstituição histórica das graves violações a direitos humanos perpetradas durante a ditadura militar, não apenas em nosso estado, mas também no país e no exterior.

E, mesmo não sendo este seu desiderato principal, pôde inclusive reunir informações até então ignoradas, ou pouco conhecidas, sobre fatos ocultados durante as décadas de vigência das políticas de esquecimento a que o Brasil foi, e ainda vem sendo, submetido.

Ademais, ao contribuir para a revelação das verdades escondidas acerca dos crimes praticados pelos agentes do aparato repressor, constituído para a sustentação do regime ditatorial imposto ao país ao longo de vinte e um anos, a comissão gaúcha também ajudou a desmontar alguns dos mitos criados pelos setores interessados em mantê-los a salvo do conhecimento da população brasileira - bem como e, sobretudo isso, da necessária responsabilização, política e jurídica, de seus autores, diretos e indiretos.

1.1 A "ditabranda"

O primeiro destes mitos diz respeito à natureza mesma do sistema político ilegítimo instituído com o golpe de estado desfechado em abril de 1964 - que certo órgão de imprensa do centro do país, editado por grupo jornalístico que não apenas o defendeu, como participou ativamente de suas ações repressivas, chegou ao cúmulo de denominar de "ditabranda". Além da intrínseca desfaçatez, a expressão revela desconhecimento absoluto da realidade histórica do período: se é verdade que os governos ditatoriais brasileiros mataram menos adversários políticos que seus congêneres do Cone Sul da América do Sul, entre os anos 1960 e 1980, em compensação sequestraram, prenderam ilegalmente e torturaram mais pessoas - no mínimo, sessenta mil cidadãos e cidadãs, em todo território nacional, segundo já comprovado, documentalmente, pelo trabalho da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

A respeito, convém lembrar a sinistra estatística comparativa das ações das polícias políticas do Chile, da Argentina e do Brasil: no primeiro, para cada três perseguidos, dois foram assassinados; na segunda, a cada setenta e três presos, durante o chamado "terrorismo de estado", apenas um sobreviveu (?!), pavorosa cifra que só encontra paralelo na Alemanha nazista; enquanto isso, em nosso país, a cada vinte e três presos, um era assassinado.

Como se vê, a ditadura brasileira não foi menos perversa: se matou menos, prendeu e torturou mais vítimas que as demais. Não por outra razão, o conhecimento aqui acumulado, a partir dos inúmeros depoimentos recolhidos dos sobreviventes, sobre os métodos de tortura usados pelos agentes da repressão política da ditadura, vem ajudando autoridades e estudiosos argentinos, já que a imensa maioria dos milhares de cidadãos ali presos pela última ditadura é constituída de pessoas mortas e desaparecidas - após sofrerem sevícias idênticas.

1.2 "O golpe no golpe" (ou "a ditadura envergonhada")

Outra falácia que o resultado das apurações empreendidas pela CEV/RS ajudou a desmentir refere-se à primeira fase repressiva da ditadura brasileira - que alguém chegou a chamar, impropriamente, de "ditadura envergonhada". Mesmo sendo verdadeiro que o regime ditatorial instalado em 1964 endureceu progressivamente ao longo daquela década, restou demonstrado, também, que desde seus primórdios seus dirigentes já trataram de constituir violento sistema repressor, conduzido sob direção militar e voltado precipuamente aos setores refratários à nova ordem -responsável, logo de saída, por desencadear, em todo o país, a prisão de milhares de pessoas ligadas ao governo deposto, ou a seus apoiadores.

Aqui no Rio Grande, como visto acima, a CEV/RS se encarregou de mostrar que o aparato repressivo centralizado no DOPS estadual, submetido ao comando de militares do Exército, ligados ao CIE, nem bem completados dois anos após o golpe, já sequestrava, prendia ilegalmente, torturava e, até mesmo, matava os que ousavam opor-se ou resistir à ditadura.

2 A permanência da ditadura no presente: leis e ideologias, práticas e instituições herdadas e atuais

A reconstituição histórica do período ditatorial, a partir dos depoimentos e documentos coletados pela comissão gaúcha, permitiu-lhe identificar e apontar a existência de instituições e práticas, dele oriundas, ainda hoje presentes, e que dificultam, quando não impedem, a plena efetivação da jovem democracia brasileira. Isto se deve, claramente, à demora e lentidão do processo de justiça transicional, em decorrência das peculiares condições, antes aludidas, em que se deu a passagem do regime de exceção à democracia, em nosso país.

2.1 Tortura

A primeira destas sequelas é a tortura, lamentável chaga que, embora marque toda a formação histórica do Brasil, como traço cultural herdado da escravidão, recebeu grande impulso durante a ditadura - quando foi "modernizada", mediante a introdução de novas técnicas, ditas "científicas", sendo a partir daí verdadeiramente institucionalizada como método de ação policial. Com efeito, as sevícias praticadas secularmente pelas polícias brasileiras contra seus alvos seletivos e preferenciais - pobres, negros ou pardos, habitantes de morros, favelas e periferias - com a hipócrita (e às vezes, declarada) aceitação das classes dominantes e seus aliados, deixaram de ser tratadas pelas autoridades governamentais como "exceção", ou "distorção", passando a integrar o protocolo e a rotina das investigações.

Este quadro, lamentavelmente, não se alterou com a redemocratiza-ção incompleta por que passou o país, a não ser, é claro, quanto ao objeto sistemático das torturas, dirigidas ainda hoje, e sistematicamente, em todo o Brasil - agora não mais contra os perseguidos políticos, mas contra os presos comuns, nas delegacias, presídios e centros de detenção de jovens.

2.2 Militarização das polícias

Outra lamentável herança do regime de exceção é a militarização das polícias estaduais. Efetivamente, mesmo existentes em alguns estados brasileiros antes do golpe, as forças públicas não exerciam até então as funções de policiamento ostensivo, que lhes foram passadas pelos ditadores, após a extinção das polícias fardadas civis, que as cumpriam antes.

Disso decorrem até hoje graves efeitos, sentidos de modo especial pelos contingentes desfavorecidos da população brasileira, que sofrem diuturnamente a ação repressiva, violenta e seletiva, das polícias militares estaduais. A completa inaptidão das organizações militares para o exercício democrático das atividades policiais, decorrente da natureza distinta, e até mesmo oposta destas importantes funções de estado, é agravada, no Brasil, pela formação dos efetivos das chamadas PMs - que passou a ser feita no período excepcional, e continua sendo em nossos dias, sob os ditames da famigerada "ideologia da segurança nacional".

De fato, criada pelos franceses, e aperfeiçoada pelos norte-americanos, esta doutrina se estrutura a partir do conceito de "inimigo interno" -antes, os "subversivos", hoje, os "marginais", ou ainda "vagabundos", dispersos e indistintos em meio à população pobre e periférica, que é tratada, assim, como alvo sistemático de repressão, e não de proteção.

2.3 Oligopólio das comunicações

Faz parte, também, do perverso legado dos ditadores ao país, o processo de oligopolização dos meios de comunicação - fenômeno que bloqueia a circulação democrática da informação e distorce o processo político, pelo empoderamento de grandes grupos midiáticos, cujos veículos articulam e reforçam continuamente as demandas repressivas, direcionadas contra os segmentos sociais populares e progressistas.

Cabe lembrar que parte das poucas famílias (ou seria "famiglias"?!) que dominam a chamada grande mídia - principais redes televisivas e radiofônicas, jornais e revistas de amplitude e circulação nacionais - já atuava antes do golpe, e participou ativamente de sua preparação, com a veiculação do discurso anticomunista que serviu de pano de fundo para sua deflagração, desta maneira ajudando a mobilizar os setores favoráveis à conspiração.

Não por outro motivo, aliás, estes conglomerados foram contemplados - uns mais que outros, é verdade - com as benesses dos novos governantes, que lhes permitiram assumir de vez o controle da comunicação social no país, colocando-a até hoje a serviço da legitimação das classes dominantes, e de seu excludente sistema econômico.

3 A continuidade do processo de justiça de transição como condição para a remoção das sequelas da ditadura no Brasil

A estas perversas heranças da ditadura, pode-se acrescentar ainda a existência de leis nela gestadas, e ainda vigentes, como as já citadas Leis de Anistia e de Segurança Nacional. E o próprio aviltamento da atividade parlamentar no país, responsável pela crescente rejeição da política em nossos dias, processo que, se não nasceu no período ditatorial, foi então consideravelmente ampliado, como já se teve oportunidade de destacar antes.

Ao finalizar esta exposição, pois, cumpre reiterar que a indevida presença destes efeitos deletérios do regime de força imposto ao país, durante mais de duas décadas, deve-se, principalmente, à demora e lentidão de nosso processo de justiça de transição - o que permitiu a permanência de leis e instituições, práticas e ideologias então concebidas ou amplificadas.

Donde decorre a necessidade premente de dar continuidade e aprofundar as medidas de justiça transicional tomadas na última década, em especial a partir do trabalho das Comissões de Verdade e da Comissão de Anistia, seja pela ampla revelação dos crimes de lesa-humanidade, praticados durante a ditadura militar, seja pela responsabilização de seus autores e mentores - seja ainda pela remoção de suas perversas sequelas.

Esta tarefa deve ocupar, portanto, primeiríssimo lugar na agenda política das pessoas e grupos que lutam pelos direitos humanos e pela afirmação da cidadania no país, como condição imprescindível à plena efetivação de nossa incipiente democracia, especialmente diante das ameaças resultantes da recente onda reacionária que varre o Brasil.

Carlos Frederico Guazzelli é Mestrado em Ciência Política (1989), do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sem apresentação de dissertação. Especialização em Planejamento Regional e Urbano (1979), pelo Programa de Pós-Graduação em Planejamento Regional e Urbano (PROPUR) da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (1976) pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor da Escola Superior da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul. Coordenador da Comissão Estadual da Verdade-RS (2012-14).


[Fonte: Por Carlos Frederico Guazzelli, Cadernos IHU ideias, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Instituto Humanitas Unisinos, ano 14, nš 252, vol. 14, 2016]


Notas:

1. O site da Comissão Estadual da Verdade/RS, na Internet, que estava hospedado na Casa Civil do Governo do Estado, foi retirado do ar, em fevereiro de 2016, sem explicações. [Voltar]


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