Seqüestro no Cone Sul
Polícia versus Governo

A farsa de Bagé revelava, com relativa clareza, até que ponto iam as manobras de despiste.

A Comissão da Assembleia Legislativa, na parte final do relatório, recomendava ci instauração de inquérito, a fim de que fossem processados, por falso testemunho, os depoentes Oswaldo Biaggi de Lima, Patrocínio Lugo Acosta e o advogado responsável pelo ocultamente de Janito Kepler, Dr. António Silveira de Castro.

Enquanto a Polícia Federal trançava seus cordões para confundir a verdade, a Polícia Estadual não ficava atrás. Todas as medidas a seu alcance eram tomadas, mesmo que caracterizassem insubordinação à mais alta esfera da hierarquia estadual, representada pelo Governador.

Não era de se estranhar, portanto, que o relatório do Delegado Marco Aurélio Reis tivesse sido montado sob medida para que nenhuma falta administrativa viesse a ser imputada a Seelig, a Didi e a Jorjao, o que comprovava que a infra-estrutura policial assumia posições radicalmente contrárias ao próprio Governador.

Todavia, outros fatos ainda estariam por ocorrer, que viriam conferir contornos bem mais sérios à ousadia policial. Isso, evidentemente, sem se falar do aspecto ridículo que envolvia inúmeras situações, como no caso do Relator da sindicância, que assumira o papel do marido enganado -- o último a saber!

Com total razão estava o sucessor de Faoro, o Dr. Eduardo Seabra Fagundes, quando, em comentário à sucursal do "Correio do Povo" de Florianópolis, afirmava:

"O seqüestro do casal uruguaio é um acontecimento triste que jamais terá um final feliz. Sabemos que ainda haverá percalços, que são as resistências que os órgãos e autoridades envolvidas de ambos os países irão oferecer e muitas vezes com a solidariedade de autoridades mais qualificadas que, estranhamente, ao invés de se somarem à opinião pública, apurando a fundo o ato cometido contra a Soberania Nacional, dão a impressão inaceitável de solidarizar-se com os transgressores da ordem pública."

Guazelli agora tinha plena consciência de que as coisas não se encaminhavam corretamente. Em entrevista que deu à Tevê Gaúcha afirmou que nem tudo havia corrido como ele esperava. Por isso estava preocupado e atento, certo de que haveria de encontrar na Lei os remédios adequados.

Ninguém duvidava das responsabilidades do Governador naquele estado de coisas. Em termos futebolísticos, Guazelli atrasara a bola para o Secretário de Segurança e este, por sua vez, fizera com que ela recuasse para o Conselho Superior de Polícia, que era um verdadeiro ninho de cobras de onde ninguém se poderia aproximar, a menos que pertencesse à curriola, pois se transformara num departamento de alquimia informativa, de embuste e imbróglio. De lá o balão só sairia, para usar os adequados termos do Pedalada, "tirado de letra".

O Conselho estava em total evidência nos noticiários, uma vez que a ele competiria o julgamento dos policiais.

O Governador, por sua vez, tivera seguro conhecimento das intenções escusas com referência à nao-suspensao preventiva dos funcionários da Polícia -- "por não terem sido encontradas razões". Foi provavelmente isso que, antes de o Conselho iniciar sua reunião de 25 de fevereiro de 1979, fez com que quatro de seus membros recebessem a desagradável notícia de suas demissões, em virtude de decreto assinado no dia anterior. Com isso, o quadro de conselheiros era reduzido de nove para sete membros. Os conselheiros afastados, embora constrangidos, tiveram que assistir à posse do Procurador de Justiça Ruy Rosado de Aguiar e do Consultor Ivalino João Dotosan.

A medida adotada pelo Governador, muito bem recebida pela Ordem dos Advogados, tinha o mérito de promover uma necessária limpeza da área, aspirando a devolver ao Rio Grande a moralidade pública e a dignidade administrativa de que estava carente.

E havia sólidos fundamentos para isso: todo o Brasil havia identificado os seqüestradores, menos a Policia do Rio Grande.

A circunstancia de o Relator designado encontrar-se descansando a mil quilómetros do local da sindicância fato que revelou a total ineficiência policial na revelação dos fatos, permitindo constatar a existência de um evidente jogo de empurra - deve ter sido a gota d'água que detonou a medida decisiva do Governo no sentido de neutralizar as manobras policialescas.

Os fatos repercutiam na Assembleia. O Deputado Cícero Viana, da ARENA, designava como "heterogénea e esdrúxula" a nova estrutura do Conselho Superior de Polícia, dizendo que Guazelli havia apunhalado a Polícia. Ao contrario, os deputados do MDB, pela primeira vez após 19ó4, passaram a defender e aplaudir a decisão governamental. Lntre estes, Romildo Bolsan, que afirmava que a atitude do Governador era decorrente da própria omissão do Conselho.

A revista "Isto é" em reportagem assinada por Osmar Trindade, entendia que a alteração do Conselho implicava uma devassa na Polícia incompetente, enquanto Valter Galvani escrevia na "Folha da Manha" que:

"Um dia ainda há de se escrever toda história desse seqüestro. e então, com todos os fatos esclarecidos, haverá um grande assombro popular diante do festival de incompetência e da torpe covardia que o caracterizou."

Depois de mais de cinquenta dias de traballio sob a presidência do Delegado Marco Aurélio Silva Reis, a sindicância nada apurara. Havia produzido três volumes de informações: o primeiro continha apenas recortes de jornais; o segundo compilava as atividades dos uruguaios no Brasil; o terceiro abordava os antecedentes políticos meus, de Luís Cláudio e de J.B. Scalco. Evidenciava-se a deturpação dos objetivos da sindicância.

Guazelli, em vista do quadro que se armara, tinha passado a manter um relacionamento áspero com os órgãos da Segurança, sobretudo com o DOPS, que teimava em aperfeiçoar sua arte e engenho na escamoteação dos fatos. A irritação do Governador e o aquecimento das áreas de atrito impuseram a renúncia de Marco Aurélio, a autoridade sindicante.

Para o posto foi então designado o Delegado Jahir Souza Pinto, cuja efémera passagem pelo cargo não o engrandeceu, como não engrandecera seu antecessor.

Renato Maciel de Sá Jr., ao assumir suas funções de Relator, re-quereu catorze diligências. A mais importante consistia em submeter os funcionários do DOPS a ato de reconhecimento.

Como Guazelli estava licenciado, pois viajara a Brasília, para encontrar-se com o Presidente da República, assumiu a chefia do Executivo o Deputado Carlos Giacomazzi.

O Governador em exercício recebeu, assim, pessoalmente, de Werner Becker, um requerimento em que Lufs Cláudio solicitava certidão com os nomes de todos os funcionários do Departamento de Ordem Política e Social, abrangendo o período de agosto a novembro de 1978.

Seja porque a providência facilitaria o traballio dos jornalistas, seja porque o Governo do Estado tinha intenção de solucionar adequadamente o problema, o requerimento foi deferido. A Polícia, todavia, não demonstrava o mesmo interesse, e o atendimento da solicitação teve que ser intermediado por um contato telefónico entre Giacomazzi e Leònidas Silva Reis.

Apesar disso, no momento do ato de identificação, realizado no prédio da Secretaria de Segurança, criou-se um impasse. Werner Becker exigia que, além da lista dos funcionários, todos os policiais apresentassem seus documentos de identidade. A solicitação não teria sido aceita pelo Delegado-Presidente, Jahir Souza Pinto, o qual, segundo o advogado, dissera:

-- O Governador não tem autoridade para determinar como deve ser feito o processo de reconhecimento.

Uma vez caracterizada a insubordinação hierárquica, foi suspensa a acareação, mas Giacomazzi, fazendo valer suas prerrogativas, afastou o Delegado Jahir, demitindo-o de suas funções de chefe da sindicância.

Naqueles dois dias o Palácio Piratini esteve em completa efervescência, pois praticamente todos os órgãos de divulgação acompanhavam todos os lances em desenvolvimento. Embora a agitação palaciana não agradasse aos órgãos policiais, o povo seguia o episódio com interesse e, ao final, com indisfarçada satisfação.

A 6 de março, reassumindo, Guazelli confirmou o afastamento do Delegado Jahir, consagrando o respeito ao plano hierárquico da administração estadual e a submissão daqueles que, devendo respeito à Lei, viam desbaratadas suas tentativas de criar uma espécie de máfia, dotada de poder paralelo, que insistia em afrontar até o próprio Governo do Estado.

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