Seqüestro no Cone Sul
O primeiro telefonema anônimo

"Entreguem meus netos, pelo menos" -- esse foi o apelo angustiado de Da. Lília que os jornais publicaram em 23 de novembro. Após a entrevista coletiva que deu, na sede do jornal "Zero Hora", fomos para minha casa, onde eu aguardava uma cópia xerografada do bilhete de Lilian. Procedemos a uma minuciosa análise e concluímos, com evidência, que a assinatura não era de Lilian. Ela nunca liavia acentuado seu nome, como ocorria no billiete. A letra também diferia totalmente do talhe que adotava.

Diante disso, eu me perguntava onde teria estado esse bilhete entre os dias 17 e 21. Quem o teria redigido? Quem fizera a entrega?

Frente a tantas interrogações, os jornais não davam trégua. Enquanto a "Folha de São Paulo", em editorial, assinalava a inquestionável gravidade do fato, exigindo imediata e severa investigação por parte das autoridades, a Polícia Federal e a Estadual continuavam negando qualquer envolvimento. Para eles, o casal teria simplesmente desaparecido.

Na tarde desse mesmo dia acompanhei Da. Lília ao Consulado uruguaio. Fomos recebidos pelo Cônsul, Daniel Frias Vidal, mas percebemos que nossa presença impunha ao ambiente nervosismo e constrangimento generalizados. Saímos dali com a sensação de apenas ter cumprido uma formalidade, pois sentimos que nenhuma ajuda nos seria prestada. Imagino que o Cônsul participasse do mesmo juízo formulado por um dos assessores de imprensa da Polícia Federal, para quem "esse possível seqüestro é um caso bobo."

Se uma declaração desse género demonstrava que o Governo brasileiro se eximia do caso, o mesmo não se podia dizer do uruguaio, que não escondia sua preocupação. A tal ponto que chegou a determinar, em seu território, a apreensão de nossos jornais, sendo especialmente visada a "Folha da Tarde". Mais tarde, todos os periódicos brasileiros que publicassem matéria sobre o desaparecimento ou sobre o caso de Flávia Schilling tinham suas edições apreendidas.

Como as emissoras de rádio haviam estado presentes à entrevista coletiva de Da. Lília, suas palavras ecoavam por todo o Rio Grande. Suas mensagens, trémulas e angustiadas, rasgavam o céu do pampa, num apelo doloroso que tocava a alma de nossa gente, porque nascidas da convicção e da esperança.

Todavia, não eram apenas anónimos leitores, ouvintes e telespectadores totalmente estranhos ao caso que tomavam conhecimento daqueles pungentes pedidos de uma avó que suplicava pela devolução de seus netos. Havia alguém que, próxima a alguns acontecimentos ligados ao fato, compungia-se como se também fosse mãe. Deverá ter pensado que era uma injustiça o que estavam fazendo com as crianças, que não custaria nada dar uma ajuda, pois de nada tinham culpa. E como, embora involuntariamente, estivesse envolvida, sua consciência provavelmente a incomodava. Na luta entre o bem e o mal, finalmente tomou sua decisão. Não precisava mais do que um telefone.

Quem atendeu foi minha empregada.

-- Eu devo favores ao Dr. Ferri. Diga a ele para agir depressa porque as crianças correm perigo.

Mais tarde houve outro telefonema, agora atendido por minha filha Márcia, de dezesseis anos. Como da vez anterior, era uma voz feminina, do outro lado da linha:

-- Os filhos de Lilian já estão no Uruguai. Foram levados com a mãe e Universindo, pelo DOPS. Estão passando bem e possivelmente sejam entregues a um asilo.

Márcia pediu que repetisse. Ela acedeu e desligou.

Só mais tarde me dei conta de quanto me tinham valido esses telefonemas anónimos, de que inicialmente eu desconfiara, embora não desprezasse as informações e até as admitisse como verdadeiras.

Enquanto isso, em Brasília, tanto o Ministério do Exército quanto o da Justiça, assim como o Departamento da Polícia Federal, negavam qualquer envolvimento de seus órgãos de segurança. O Ministro Armando Falcão inclusive chegava a recusar a hipótese de ter havido um seqüestro orientado do exterior. Paralelamente, o Delegado Fucks, Coordenador da Polícia Federal em Porto Alegre, asseverava que existia apenas um desaparecimento, acrescentando considerar totalmente improvável que forças de segurança de um país vizinho tivessem penetrado em nosso território sem que ninguém soubesse. E nisso, convenhamos, ele tinha toda a razão: as pessoas que estavam no apartamento de Lilian falavam português!

Não faltaram, porém, de imediato, investigações da polícia sobre os antecedentes de Lilian. Para tanto, mobilizaram a Interpol do Uruguai e da Itália. E o Delegado Fucks começou a revelar certa contradição, pois, ao mesmo tempo que minimizava os fatos, negando a hipótese de seqüestro, informava da existência de importantes pistas que possibilitariam a solução do caso a qualquer momento. E, porque era realmente ágil no desempenho de suas funções, bem depressa identificou o número de voo e os talões de passagens de Lilian e seus filhos, quando de sua vinda da Itália para o Brasil. Em última análise, estava mais preocupado com as pistas que elucidavam a respeito da chegada, do que com aquelas com que deveria ter-se preocupado -- as pistas da saída, que seriam seguramente rodoviárias, e não aéreas.

De qualquer maneira, o inquérito federal comprovou que Camilo e Francesca frequentavam o Jardim de Infância da Escola "Cisne Branco", tendo comparecido regularmente até o dia 10 de novembro, sextafeira. Isso serviu para chamar nossa atenção para um fato: dia 11, sábado, e 12, domingo, não houve aula. E o domingo, dia 12, coincidia com a data do desaparecimento das crianças, da mãe e de Universindo.

No sábado, dia 25, ocorreu um fato novo. Ainda não eram bem catorze horas quando o telefone tocou em minha casa. Era de Montevidéu. Do outro lado da linha, uma voz masculina identificou-se como Homero Celiberti e comunicou que os netos lhe tinham sido entregues. Mantive a ligação e pedi a Da. Lília que identificasse a voz. Passei-lhe o fone e observei que, repentinamente, seu semblante se modificou. A voz era de Homero. E a senhora começou a chorar, mas agora de alegria.

Algumas horas após, as agências internacionais confirmavam a entrega das crianças, com base em informações constantes de dois comunicados expedidos pelo Escritório de Imprensa das Forças Conjuntas Uruguaias, que eram retransmitidos pêlos meios de comunicação. O primeiro, de número 1.400, informava que os desaparecidos "foram detidos pelas Forças Conjuntas, ao penetrarem em território uruguaio, encontrando-se em seu poder material sedicioso, eis que integravam vasta organização internacional marxista". Acrescentava ainda que "se encontravam em perfeitas condições de saúde, e pelas razões indicadas, preferiram sacrificar o segredo dos procedimentos e o eventual êxito dos mesmos, dispondo-se a transferir a custódia dos menores a seus avós". O segundo comunicado, de número l .401, esclarecia que Lilian e Universindo entraram clandestinamente no Uruguai, por Aceguá (distrito de Bagé), viajando em dois automóveis. Num deles estava o casal, noutro, as crianças, tendo seu condutor fugido, abandonando-as.

Em vista do notório descrédito que tais desculpas despertavam em mim, continuei classificando o fato como "ignominioso e sórdido seqüestro", em declarações que foram publicadas pelo "Estado de São Paulo". E, de forma mais contundente, denunciei a greve branca e a "operação tartaruga" de nossa policia, acrescentando: "a soberania brasileira foi ultrajada indignamente pêlos esbirros da ditadura militar uruguaia". O Ministério das Relações Exteriores e, enfim, o Governo Brasileiro "têm obrigação moral de prestar contas ao povo deste país e exigir escusas por este vilipêndio ao nosso direito de soberania".

Da. Lilia já havia afirmado reiteradamente -- mesmo antes dos comunicados - ser totalmente fora de propósito o retorno voluntário de Lilian ao Uruguai, pois ela jamais voltaria ao lugar onde fora torturada. Não foi diferente a lógica seguida pelo "Jornal do Brasil" quando - na coluna de "informes", sob o título "Banalidade do Mal" -- afirmou que ninguém está obrigado a acreditar em coisas improváveis. E concluía: "Pode-se aceitar essa versão, e, com ela, tolerar a monstruosidade. Ou preferir o relato fatual, direto, minucioso e pessoal de uma testemunha do delito - Luís Cláudio Cunha - que viu o seqüestro e, por profissão, vive da credibilidade da própria palavra".

A esta altura dos acontecimentos, já havia fortes indícios que sugeriam a cumplicidade da polícia brasileira. Com isso, os fatos se tornavam mais graves, e as notícias passaram a assumir maior impacto. Um dia após o retorno de Da. Lília para Montevidéu, eu denunciei a participação de policiais brasileiros. Eles sabiam da vinda dos uruguaios e colocaram-se a sua disposição para a prática do crime. Tudo levava à evidência de que os indivíduos que estavam no apartamento, quando chegaram os jornalistas, eram brasileiros e, conseqüentemente, a entrega das vítimas à polícia uruguaia tinha sido feita por eles.

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Este libro ha sido editado en Internet el 01sep02 por el Equipo Nizkor y Derechos Human Rights