Neonazismo
As formas de lembrar e a historia do Holocausto

Roney Cytrynowicz *


Historiador, Ph.D em História pela Universidade de São Paulo (USP), foi articulista da Revista Shalom (SP), a principal revista brasileira sobre judaísmo contemporâneo. Atualmente é colaborador do jornal Folha de São Paulo e pesquisador na área de anti-semitismo, integralismo e neonazismo. É autor dos livros "Memória da barbárie: História do Holocausto" e "Guerra sem guerra: a mobilização do cotidiano durante a II Guerra Mundial"

O trabalho com historia e memoria tem recebido urna importancia crescente ñas escolas, na mídia, em exposições e em diversos marcos públicos. A questáo do genocidio executado pelos nazistas contra os judeus durante a Segunda Guerra Mundial (Holocausto ou Shoah) ocupa um lugar importante nos registros de memoria e de historia, compreendido como o evento ou um dos eventos centráis da historia do século 20.

O estudo, a compreensáo e a memoria do genocidio sao urna forma única de aproxima9áo com a historia da barbarie e para a compreensáo de como foi possível que um Estado moderno, considerado exemplar em sua civilizagáo, tenha organizado e executado um genocidio em escala industrial ha pouco mais de cinqüenta anos.

Ao encerrar-se o século 20, o respeito aos direitos humanos, o respeito as minorias étnicas, o respeito aos valores básicos da cidadania e da democracia, continuam a ser discutidos, porque parcela significativa da Humanidade continua a nao ter estes direitos assegurados e permanece como vítima de varias formas de violencia. É ueste sentido que o estudo do Holocausto adquire urna relevancia política e histórica urgente: como urna historia e memoria cuja presença é fundamental para servir como testemunho de tempos sombríos e como emblema das possibilidades de destruigáo no mundo contemporáneo.

A valorizado crescente da memoria e da historia, em geral, está provavelmente relacionada a urna necessidade de profundidade e densidade na compreensáo do nosso presente, porque a historia e a memoria nao sao apenas formas de conhecer o passado como urna viagem de nostalgia e de curiosidades, mas ferramentas para pensar o presente, alargando as possibilidades de sua compreensáo e de sua transformaçáo.

Em urna época marcada pela globalizaçáo do espaço e pela virtualizaçáo do tempo, parece haver uma verdadeira necessidade política, educacional e afetiva tanto de memória como de história, de buscarmos raízes e vínculos, de buscar lugares e tempos de inserção mais seguros; de nos incluirmos em uma genealogia de relações familiares, comunitárias e sociais; de pesquisar as opções passadas para recuperar a capacidade de pensar, criticar e imaginar outras possibilidades para viver e organizar a nossa vida pessoal e social.

É fundamental que possamos ver o presente em uma perspectiva de tempo mais larga, que possamos criar e transformar a partir de um inventário de opções e possibilidades mais larga do que o que nos parece como o imutável presente. Mais do que tudo, é importante recuperar nossa condição de sujeitos, sujeitos da história, pessoas capazes de construir e de reconstruir o presente. Nós não somos apenas espectadores, nem tampouco vítimas da história, por mais que os processos económicos, a globalização e os meios de comunicação de massa nos imponham este lugar passivo. O espaço global e o tempo virtual nos têm levado à direção oposta a de sujeitos, nos relegando ao papel de consumidores e de espectadores da história.

O trabalho com a memória e com a história permite romper o lugar passivo no qual achamos que o simples fato de existirmos nos toma participantes. O presente não é, portanto, como uma certa visão liberal hegemónica pretende, o resultado natural da evolução do homem e da sociedade. Esta visão está associada à importância que o desenvolvimento tecnológico tem tido em nosso cotidiano e que nos induz a ver todos os processos sociais, políticos e culturais por este prisma, como se a história fosse uma corrida de progresso rumo a formas mais evoluídas de vida (mais evoluído apresentado como sinónimo de um certo conforto material que pode ser consumido para maior conforto). Os acontecimentos do século 20 têm desfeito todas as perspectivas de otimismo anunciadas desde o seu início com o progresso científico e tecnológico.

Se em um primeiro momento história e memória podem ser tratadas conjuntamente, em um segundo momento é interessante distinguir e problematizar a forma como ambas se relacionam com o passado. A memória está ligada à identidade, seja individual, coletiva ou social. Ela cria identidade, vínculos, raízes; ela protege, cria relações, insere a pessoa em seu próprio passado, sua família, sua comunidade e seu país. Processo fundamental para o indivíduo e a sociedade, a memória tem a função de proteger, de assegurar, de reiterar, inserir, de apaziguar, e não de criticar, de questionar, de problematizar. O compromisso fundamental da memória é com o indivíduo ou, quando social, com o grupo no qual ela é organizada.

A história, por sua vez, entendida como o campo de trabalho dos historiadores, não apenas problematiza a memória e a usa como fonte, mas tem outro compromisso, um compromisso de ir além das questões de identidade e sua procura, no passado, de segurança e de proteção, de continuidade e de origem. A história tem como objetivo pensar criticamente o passado, entender os conflitos e as tensões que resultaram nos processos atuais, e não recusar nenhum tema, mesmo quando contraria a segurança buscada na memória. Assim, a história tem como compromisso servir de ferramenta para repensar o presente a partir do passado. Porque a história trata fundamentalmente do homem no tempo e da responsabilidade do homem no tempo. O tempo da história não é uma variável natural, biológica; ele é resultado de um processo social, ele é transformado pela ação intencional dos homens.

No caso do registro da memória e da história do Holocausto, esta discussão adquire uma intensidade particular, dada a importância que a memória, sob a forma de testemunhos, de depoimentos e de registros orais têm ganho, em inúmeros projetos e filmes baseados na palavra dos sobreviventes. Nos últimos anos este tem sido o registro preponderante, deixando-se de lado, em parte, a indispensável moldura da história, que, no entanto, é fundamental para contextualizar a memória e colocá-la dentro de um quadro político, económico, cultural e social.

A discussão sobre memória e história está relacionada com nossa postura e nossas opções, como cidadãos, de como vamos lembrar e como vamos falar do evento Holocausto e de que forma esta memória e esta história podem servir para uma conhecimento que aperfeiçoe nossas ferramentas para garantir e reforçar a democracia e o respeito aos direitos humanos.

Para discutir as questões relativas à memória e à história do Holocausto, sobre como lembrar e o que lembrar, comecemos por uma aproximação com um memorial, um museu do Holocausto. No campo de concentração e de extermínio de Auschwitz, na Polónia, situado na cidade de Oswiceim, próximo a Cracóvia e tomado um museu-memorial pedagógico, certamente o que mais choca os visitantes, e são centenas de visitantes de todas as partes do mundo, é o interior do prédio de tijolinho aparente onde funcionava o comando das SS, com as minúsculas celas solitárias sem janela. O prédio está totalmente conservado e não há nada nele, exteriormente, que chame a atenção. Nas paredes dos corredores, dezenas de fotografias de poloneses mortos estão dispostas em quadros. São mortos com nome e sobrenome, a tortura e o sofrimento com dimensão humana reconhecível. Estes quadros são a memória de pessoas assassinadas, poloneses assassinados como indivíduos com seu próprio nome.

Ao andar pelo resto do campo-museu, o horror esperado pelo conhecimento da história do Holocausto dilui-se rapidamente diante do caráter turísticopedagógico que o campo assumiu. No máximo, conforme a placa à entrada do campo, pede-se silêncio em várias línguas advertindo que naquele local algo muito triste aconteceu. Mesmo a célebre e sinistra inscrição Só o trabalho liberta é apenas uma pequena passagem para a entrada do campo que mal chama a atenção. O campo está em geral cheio de visitantes, inclusive escolares, que comem sanduíches e falam em voz alta. Dezenas de referenciais conhecidos, como placas, lanchonete, loja de souvenirs, ruas sinalizadas, roteiros préestabelecidos tomam a visita bastante amigável, ganhando um ar de história familiar conhecida. A própria proximidade do campo de Auschwitz I com a cidade de Oswiecim dilui a estranheza, criando o clima de uma vizinhança urbana e habitada próxima ao campo.

É apenas no campo conhecido como Auschwitz II, ou Birkenau, que uma ínfima parte dos visitantes percorre, que se pode ter uma aproximação com a história do genocídio. Auschwitz II era de fato o campo de extermínio do complexo conhecido como Auschwitz. O que o visitante vê, sem nenhum roteiro ou facilidade turística, são barracões mal conservados e, a cerca de meia hora de caminhada da entrada, as ruínas de uma câmara de gás, com a rampa que levava as vítimas. O que mais choca olhar aquelas ruínas é precisamente a sinistra banalidade das marcas e dos vestígios do genocídio nazista. A ruína da câmara de gás é a ruína de uma sala de concreto com uma única porta cujo acesso se dava pela rampa. Esta é a marca do horror nazista, a morte em massa diluída na mais banal rotina cotidiana, executada industrialmente por milhares de homens e mulheres em câmaras de gás que eram salas de concreto que em nada chamam a atenção. Esta chocante simplicidade dos instrumentos e da economia de destruição é muito perturbadora, contrastada com o conhecimento histórico que nós temos sobre a gigantesca operação que foi o genocídio, sobre o número de executores envolvidos e sobre a dimensão do número de vítimas.

Fazendo um contraponto com os quadros na parede do prédio que era o comando das SS em Auschwitz, quando pensamos no genocídio nazista, do ponto de vista da história, não é de mortos com nome e sobrenome que se trata, indivíduos mortos com retratos e molduras individuais, que podem ser dispostos em uma parede. Trata-se de milhões de mortos, dezenas de milhares dos quais possivelmente sem qualquer registro possível. O genocídio nazista destruiu centenas de comunidades, que desapareceram. Apenas na Polónia, estima-se que cerca de 300 comunidades judaicas foram destruídas.

Auschwitz foi o maior dos campos de extermínio construídos pêlos nazistas na Polónia ocupada a partir de setembro de 1939. Foi também o maior campo de concentração e de trabalhos forçados entre os mais de dois mil campos de concentração na Alemanha e países ocupados impostos pêlos nazistas após 1933. O que se chama genericamente de Auschwitz era de fato um complexo formado por Auschwitz I, para trabalhos forçados e onde chegaram a estar presos 135 mil pessoas; Auschwitz II ou Birkenau, onde foram mortos 1,1 milhão de pessoas em câmaras de gás, e Auschwitz III ou Buna-Monowitz, um conjunto de 46 campos de trabalhos forçados para a indústria alemã. Dezenas de milhares de presos que trabalharam nas fábricas morreram de desnutrição e de doenças devido às sinistras condições de vida. Em Auschwitz II - Birkenau funcionaram sistematicamente seis câmaras de gás, nas quais os nazistas chegaram a matar 24 mil pessoas em um único dia; os corpos eram depois cremados. (1)

O extermínio sistemático dos judeus pêlos nazistas foi implementado a partir da invasão da União Soviética pela Alemanha em junho de 1941. Até dezembro de 1941, cerca de 1,3 milhão foram mortos, a maioria em fuzilamentos em massa no território soviético. A invasão da URSS foi concebida pêlos nazistas como uma verdadeira Cruzada moderna, em que libertar Moscou do julgo judaicocomunista tomou-se uma missão considerada de vida ou morte pêlos invasores. Na União Soviética, os nazistas utilizaram também, em outra frente do extermínio, pelo menos vinte caminhões que se tornaram câmaras de gás móveis; o gás era produzido pelo motor e matava por asfixia durante o trajeto até uma floresta, onde os corpos eram descarregados e enterrados. Aproximadamente 145.500 judeus foram mortos nestes caminhões entre junho de 1941 e junho de 1942.

Em dezembro de 1941, a Alemanha nazista decidiu a Solução Final do problema judaico, cujo objetivo era destruir 11 milhões de judeus na Europa. A partir desta data, os nazistas iniciaram o genocídio nos campos de extermínio na Polónia, onde mataram cerca de 2,7 milhões de judeus e 1,5 milhões de civis e prisioneiros de guerra de várias nacionalidades e grupos étnicos, como os ciganos. O zyklon B, utilizado em Auschwitz, matava suas vítimas em trêz a dez minutos. Era jogado na câmara de gás por meio de um orifício, em forma granulada, e se convertia em gás ao contato com o ar. No campo de extermínio de Treblinka, na Polónia, onde foram mortos cerca de 750 mil judeus, utilizou-se monóxido de carbono como gás letal. O total de judeus mortos nos guetos na Polónia é de cerca de 600 mil, entre o início de 1940 e o fim da guerra. O número exato de judeus mortos, no entanto, dificilmente será conhecido pela magnitude do genocídio, pela destruição de centenas de comunidades das quais não sobrou nem os registros, pelo apagamento dos vestígios pêlos nazistas e pela falta de estatísticas apropriadas antes da guerra. O número exato de vítimas - entre cinco e seis milhões, segundo os historiadores - não tem nenhuma importância frente à magnitude do genocídio de cerca de metade da população judaica da Europa. Este número interessa apenas aos demógrafos que estudam a população judaica na Europa.

A sensação de que nenhum memorial pode dar conta do horror nazista, como se percebe na visita ao campo museu de Auschwitz, poderia ser contada de outras formas, como o relato publicado de um sobrevivente do genocídio, ao narrar que, em Israel, um kibutz construiu um memorial para o Holocausto e fez uma maquete, réplica perfeita, de um campo. Chamado a dar sua opinião sobre o que havia achado da réplica, se ela estava compatível com o que ele havia testemunhado, o sobrevivente disse: Está tudo perfeito, mas falta tudo, falta o essencial, falta o horror.

Esse horror que apaga seus próprios vestígios, e que agora tenta aniquilar a memória e a história, é que nos coloca de forma tão dramática a necessidade da memória e, mais ainda, a necessidade da história. É como se nós disséssemos que não basta falar, que lembrar não é suficiente, que é preciso mais do que construir monumentos ou preservar os campos de extermínio para que lembremos do genocídio. É preciso algo mais. Este algo mais é uma opção e uma discussão social e política fundamental sobre como vamos lembrar e de como vamos recolocar o horror como registro do passado e de como vamos tomar esta memória uma história que sirva para realmente pesquisar e conhecer como foi possível o surgimento histórico do nazismo e a prática do genocídio.

Esta questão está diretamente relacionada à própria especificidade histórica do genocídio nazista, do Holocausto. O que há de específico é a possibilidade de um Estado moderno, no coração da Europa, neste nosso século 20, organizar e implementar um genocídio em escala industrial e fazê-lo com um mínimo de obstáculos morais, com um mínimo de obstáculos colocados pela sociedade. Existe no campo do debate entre historiadores sérias controvérsias entre, por exemplo, os chamados estruturalistas e os intencionalistas, mas seja como for, com mais ou menos planejamento ou intenção, a máquina genocida exterminou milhões de pessoas com poucos obstáculos.

Nas câmaras de gás atingiu-se o limite máximo de capacidade física de matar com o máximo de não envolvimento pessoal dos próprios nazistas e máxima possibilidade de negação da morte e posterior destruição dos vestígios. O processo de genocídio dos judeus europeus foi concebido e executado, entre 1941 e 1945, para evitar qualquer conhecimento e possibilidade de reação das vítimas, negando às vítimas, até a consumação última da sua própria morte, o conhecimento de que elas seriam assassinadas.

Em Auschwitz, as vítimas recebiam cabides numerados para encontrar as roupas após o "banho de desinfecção". Dentro das câmaras de gás era calculada uma luz para atenuar o pânico. O Zyklon B foi utilizado após testes com várias tipos de gás. Uma novilíngua utilizada pela burocracia impedia qualquer referência direta à morte: assassinato em massa era tratamento especial, câmaras de gás eram casas de banho, banho de desinfecção, ações ou tratamento apropriado.

No plano ideológico, os nazistas se consideravam soldados biológicos que estavam executando uma missão que a própria natureza se encarregaria de fazer contra as raças consideradas inferiores, em um processo de seleção natural. Para o nazismo, a história era luta de raças e eles estavam fazendo biologia aplicada. Eram médicos, como mostrou Robert Jay Lifton, que faziam todo o processo de seleção na entrada dos campos e operavam as câmaras de gás (2).

Todo o processo de extermínio foi medicalizado segundo uma concepção eugenista, central no nazismo, de que matar judeus significava manter a saúde do corpo ariano, associada à ideia de limpeza social e associada à propaganda milenarista e anti-comunista de que matar o povo judeu era a salvação do Reich de Mil Anos. Dois filmes do diretor Peter Cohen, Arquitetura da Destruição e Homo Sapiens, mostram de forma muito precisa a história da eugenia e o significado de arte e estética para o nazismo enquanto ideologia da destruição.

Diante do processo de dissimulação e negação da morte, as vítimas sofriam um processo ainda mais violento de estranhamento. Tudo era conduzido na mais absoluta ordem e normalidade; não havia ódio, mas sim uma burocratização limite do assassinato. Em Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt mostrou que a personalidade emblemática do nazismo é Eichmann, o burocrata cumpridor de ordens, um vazio de pensamento, sem ódio particular pelas vítimas (3). Isso é muito mais perturbador do que perceber os nazistas como o médico de Auschwitz, Mengele, que suscita explicações do tipo loucura coletiva ou do nazismo como a loucura de líderes como Hitler e Mengele. Em um filme alemão sobre o julgamento dos carrascos de um campo de concentração, vê-se a esposa de um guarda contar como era boa a vida na casa a poucos metros das câmaras de gás, o amor do marido pela filha, os cuidados com o jardim.

Trabalhando em um documentário do exército britânico sobre campos de concentração e de extermínio ao final da Segunda Guerra Mundial, o cineasta Alfred Hitchcok, ao encarar a visão de valas com milhares de cadáveres em Bergen Belsen, decidiu filmar de forma que a câmera deslizasse das testemunhas que olhavam em direção às valas sem operar nenhum corte de imagem. Para Hitchcok, aquelas imagens eram tão terrivelmente inéditas que era preciso filmar sem truques, para que nunca alguém pudesse acusar as cenas de montagem. Hitchcok, claro, não antecipou os ataques nazi-negacionistas. Ele percebeu que aquele era um crime inédito na história, que aquelas imagens eram diferentes de tudo que já se havia visto.

Do ponto de vista da memória do sobrevivente, do testemunho, poderíamos perguntar como pode o sobrevivente, após 1945, retomar os vínculos que sustentam uma vida corriqueira em um mundo que se tomou, repentina e inexplicavelmente, do ponto de vista subjetivo, inteiramente estranhado e uma máquina genocida. A visita ao campo de extermínio de Auschwitz Birkenau e aos campos de concentração, como Dachau, revela a intolerável proximidade física dos campos com a vida cotidiana polonesa ou alemã. Onde estava a fronteira entre o genocídio e as tramas do cotidiano?

Esta fronteira nunca existiu, mas a experiência do sobrevivente é a de que ele teria sido deportado para outro planeta, tamanha a sensação de isolamento e falta de sentido do que estava ocorrendo. O verdadeiro horror dos campos de concentração e de extermínio reside no fato de que os internos, mesmo que consigam manter-se vivos, estão mais isolados do mundo dos vivos do que se tivessem morrido, porque o horror compele ao esquecimento, escreveu Hannah Arendt (4). Este mundo não é este mundo poderia ser a frase dita por todos os sobreviventes. Quem não esteve 'lá' jamais vai poder entender, dizem muitos sobreviventes.

Podemos lembrar do psicanalista Bruno Bettelheim (5), que não conseguia publicar seu artigo sobre Dachau nos Estados Unidos, após deixar a Alemanha nazista, porque as pessoas não acreditavam na sua descrição de um campo de concentração pré-1939, ou mesmo do escritor italiano Primo Levi (6), que demorou anos para começar a ser lido. Escutar o sobrevivente com este estatuto de memória que existe hoje é algo relativamente recente.

Assim, se de um lado é fundamental que a memória tenha um lugar importante no registro do genocídio, que a voz dos sobreviventes seja respeitada, de outro é preciso lembrar que a memória individual, por mais necessária e importante que seja, por suas próprias características, pelas características da memória pessoal ou coletiva enquanto forma de registro do passado, não dá conta de entendermos a especificidade histórica do genocídio. A memória não pode tornar-se responsável por transmitir a dimensão histórica do que foi genocídio. Porque o que está em questão com a história de Auschwitz não é a morte do indivíduo, mas o genocídio de um povo, de milhões de pessoas, executado em escala industrial por um Estado moderno em pleno século 20. Transmitir isto é tarefa do trabalho em história e outros campos de conhecimento das ciências humanas e da psicanálise.

Os sobreviventes testemunharam fatos que não tem paralelo na história, fatos para os quais nenhuma experiência pessoal pode contribuir para um entendimento coletivo, nem mesmo para um conhecimento, o que, então, dizer da compreensão? A memória tende a acentuar a dimensão individual da destruição e do sofrimento, ela remeterá mais à terrível figura do médico nazista Mengele, às atrocidades praticadas pelo indivíduo, com ódio, com sadismo, do que a Eichmann, o burocrata que dirigiu a deportação de milhões de pessoas para campos de extermínio e emblema do genocídio praticado de forma burocrática.

Existe também uma dimensão da memória que já não pode ser recebida e escutada apenas com um manto de sacralidade e respeito incondicional pelo testemunho. A memória é apropriada pelas questões étnicas do grupo, é instrumentalizada politicamente e serve como fator de identidade e de unificação. Uma certa hegemonia do discurso da memória, como o projeto Spielberg, por exemplo, aprisiona a memória em um imenso molde de produção após o qual dificilmente se poderá reconhecer nela a experiência subjetiva da destruição. É a memória armazenada e oferecida como industria de entretenimento. Esta memória de entretenimento certamente em nada contribui nem para a dignidade dos sobreviventes nem para a compreensão do Holocausto.

Assim, cada vez mais a moldura histórica é necessária para dar sentido e lugar à voz da memória, para que ela não se perca na celebração e banalização do discurso da subjetividade, que é hoje hegemónico em um processo que muitas vezes é tomado como a deslegitimização de toda possibilidade política de resistência coletiva. Porque a memória não pode ser recebida como um discurso da impotência e da impossibilidade do sujeito e das possibilidades de transformações sociais e políticas.

Igualmente, quando pensamos em museus e memoriais como o de Auschwitz I, é importante que haja uma política da história, no sentido de que o lembrar não seja banalizado e, de certa forma, relativamente esquecido. Ao pensarmos a história e a memória do genocídio é importante que resgatemos uma história da política, da sociedade, da economia, da cultura e que não seja apenas uma memória encapsulada em si mesma ou memoriais e museus que atenuam o impacto da história do genocídio.

Os comentários deste artigo, a discussão entre memória e história, não tratam do negacionismo nazista - a tentativa de negar a ocorrência histórica do genocídio. Obviamente, a existência em si do genocídio é um fato objetivo da história, aquela camada mínima da história, como escreveu o historiador Pierre Vidal Naquet, em Os Assassinos da Memória, cuja ocorrência histórica é objetiva e não questionável (7). Com o negacionismo (que se autodenomina revisionismo apenas para confundir) não existe debate, não há interlocução. Os que pretendem negar a história não pertencem ao campo do debate em história. Não há no negacionismo nenhuma revisão da história, e a relação com este movimento deve ser exclusivamente no campo do combate político e dos tribunais de justiça.

A negação da memória e da história praticadas pelo nazi-negacionismo procuram destruir não apenas o registro do passado. Seu projeto claro é reinstaurar o regime e o sistema nos quais foi possível cometer um genocídio cujo projeto de destruição incluía apagar os próprios vestígios da destruição e as marcas do horror. A complexa e multiforme teia ideológica do nazi-negacionismo, conforme o artigo do professor luís Milman, tem muitas portas de entrada, mas invariavelmente convergem para o núcleo que é a ideologia nazista. O nazinegacionismo investe contra o que se pode considerar contradições absolutamente comuns da história (como de números e estatísticas) e uma certa fragilidade da memória (como as diferentes versões existentes do Diário de Anne Frank, porque - seu pai, em diferentes edições, omitiu trechos por razões pessoais e afetivas, ou ainda discrepâncias absolutamente usuais em depoimentos).

Defender uma política da história e uma história da política, cujas perguntas sejam um compromisso com a democracia, e o oposto de toda forma fascista e nazista de poder, é recuperar a possibilidade de fundar formas de resistência democrática e de uma memória que seja digna e coerente diante da lembrança da destruição operada pelo nazismo e de que forma podemos atualizar as formas de democracia.

Lembrar do Holocausto tem se tomado cada vez mais um imperativo moral e político para os que entendem este evento como um evento central das terríveis possibilidades de destruição tomadas possíveis no século 20. Reagir diante do negacionismo nazista é pilar da democracia. É importante enfatizar que, mesmo diante do irracionalismo e dos relativistas pós-modernos, existe sim uma camada de fatos objetivos na história. Nem tudo no campo da história está sujeito à interpretação e à relativização. Ao mesmo tempo é importante pensarmos e problematizarmos as formas do lembrar, os registros da memória e da história, de forma que o Holocausto seja lembrado e problematizado para que possamos constituir mais ferramentas para construir a democracia.

Quando findou a Grande Guerra de 1914-1918, houve, durante um curto período de tempo, uma breve ilusão de aquela seria a última das guerras. Logo a Grande Guerra seria a Primeira Guerra, 13 anos depois o nazismo tomaria o poder com uma ideologia da destruição e em 1939 teria início a Segunda Guerra. Diferentemente da ilusão de 1919, nós sabemos hoje que a barbárie genocida foi sendo montada a partir de pequenas e inúmeras ações violentas no cotidiano. Igualmente, sabemos que também é a partir de pequenas ações cotidianas, políticas, que se constrói a democracia.


Notas:

* Texto da conferencia proferida em 9 de agosto de 2000.

1. Uma sugestão de bibliografia básica sobre o Holocausto, com números utilizados neste artigo e informações básicas, inclui: Hilberg, Raul, The Destruction of the European Jews. New York, New Viewpoints, 1973 (do mesmo autor há uma segunda edição em três volumes, editada pela Holmes & Maier em 1985, revisada e definitiva); Poliakov, Leon, Harvest of Hate. The Naz.í Program for the Destruction of the Jews ofEurope. New York, Holocaust Library, 1986; Mayer, Amo, Why Did The Heavens not Darken? The Final Solution in History. New York, Pantheon Books, 1988; Mosse, George L., Toward the Final Solution. A History of European Racism. The University of Wisconsin Press, 1985; Friedlander, Saul, Por que el Holocausto?. Barcelona, Gedisa, 1979; sobre a questão do extermínio e os aliados, há o importante livro de Gilbert, Martin, Auschwitz, and the Allies. The politics of rescue. Hamlyn Paperbacks, 1981; sobre os ciganos: Kenrick, Donald e Puxon, Grattan, The Destiny of Europeus Gypsies. New York, Basic Books, 1972; para uma lista extensiva de títulos sobre o tema, ver Szonyi, David M., The Holocaust. An Annotated Bilbiography and Resource Cuide. Nova York, Ktav Publishing House, 1985; para um conhecimento informativo, existe a Enciclopédia ofthe Holocaust. New York, Macmillan Publishing Company, 1990, editada por Israel Gutman. Coletâneas como Aspects of the Third Reich, Macmillan Education, 1987, oferecem uma boa visão de conjunto do nazismo. Em português, existe a importante coletânea organizada por J. Guinsburg: Holocausto, São Paulo, Shalom, 1979.

2. Lifton, Robert Jay. The nazi doctors. Medicai killing and the Psychology o g Genocide. New York, Basic Books, 1986.

3. Arendt, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo, Diagrama e Texto, 1983.

4. Arendt, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo, Companhia das Letras, 1989

5. Bettelheim, Bruno. Sobrevivência. P. A., Artes Médicas, 1989.

6. Levi, Primo. É Isto um Homem?. R. J., Rocco, 1988.

7. Vidal-Naquet, Pierre. Os Assassinos da Memória. O Revisionismo na História. Campinas, Papims, 1988.


Editado electrónicamente por el Equipo Nizkor- Derechos Human Rights el 21feb02
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