Seqüestro no Cone Sul
...Apenas quer justiça !

Passado um ano, o saldo das ações efetivas no sentido de uma posição concreta das autoridades responsáveis era absolutamente nostálgico. Isso, sem se falar nos métodos da Polícia, que, pelas razões já examinadas, em nada haviam contribuído para esclarecimento do assunto.

Os pedidos de providências haviam percorrido os trâmites universais, todos eles, desde o Juizado de Instrução do Primeiro Turno, em Montevidéu, até a Organização das Nações Unidas, passando pelo Governo de Cárter e pela Comissão ínteramericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos.

A denúncia partira de pessoa ligada ao Comité de Defesa dos Direitos Humanos para o Cone-Sul, órgão vinculado à Comissão Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados de São Paulo.

De imediato, havia assinalado sua presença o Secretariado Internacional de Juristas pela Anistia no Uruguai-SIJAU, com sede em Paris, fundado para lutar pela anistia e respeito aos direitos humanos no Uruguai.

Jean Louis Weil viajou ao Brasil como emissário do SIJAU e como Delegado do Movimento Internacional de Juristas Católicos e da Federação Internacional dos Direitos do Homem.

Em início de 1979 o Dr. Francisco Cavallaro conseguia, na Itália, concessão de cidadania para Lilian e, face à nova nacionalidade, Alessandro Pertini, Presidente da República e o próprio Ministério do Interior instruíram a Embaixada italiana no Uruguai no sentido de que manifestasse a preocupação da Itália com relação aos direitos de Lilian.

Sucede, todavia, que o Embaixador italiano no Uruguai era extremamente ligado ao Cel. Federico Silva Ledesma, por laços de amizade, motivo por que, preterindo os interesses do Estado, Sua Excelência dava preferência à convivência com Eedesma nos salões de festa dos clubes frequentados pela elite uruguaia no exercício do Poder.

No Brasil, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados aprovou a formação de duas comissões - uma, investigatória; outra, com a incumbência de viajar ao Uruguai.

Desde a Câmara de Vereadores de Porto Alegre até o Senado Federal, o Movimento Democrático Brasileiro tomou a iniciativa de travar verdadeira batalha, afrontando os representantes da ARENA, no sentido de sensibilizar o sistema, reclamando ampla e cabal investigação dos procedimentos criminosos que atingiram os uruguaios desaparecidos.

Alguns meses após, entrou em cena também a Anistia Internacional, sediada em Eondres, secundada pelo Grupo da Suécia e pelo Grupo 4 de Milão, que pressionava os Governos europeus, especialmente o sueco -- País que asilara Universindo -- para intercederem junto ao Governo uruguaio em favor das vítimas.

Em agosto de 1979, o Dr. Robert K. Goldman, professor da American University Law School, de Massachussets, representando a Federação Internacional dos Direitos do Homem e o Secretariado Internacional de Juristas, comunicava oficialmente ao Dr. Edmundo Vargas Carreno, Secretário Executivo da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, o seqüestro ocorrido em Porto Alegre. Com base nos dados fornecidos, a Comissão preparou um informe para ser apresentado à Assembleia Geral da OEA em seu nono período ordinário de sessões. Esse informe foi identificado como "Caso 4.529".

Em 29 de outubro de 1979, a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos aprovou o texto da resolução sobre direitos humanos, que foi proposto pelas delegações do Equador, Nicarágua, Suriname e Estados Unidos, com o co-patrocínio da Venezuela, República Dominicana e Jamaica. Tal resolução, no item 3, declarava que:

"A prática das desaparições era uma afronta à consciência do hemisfério, totalmente contrária a nossos valores tradicionais comuns e às declarações e acordos firmados pêlos Estados Americanos."

Por isso, recebeu apoio a recomendação relativa à necessidade do pronto esclarecimento da situação das pessoas desaparecidas nas circunstâncias descritas no informe anual.

O item 4 deliberava apoiar a declaração das Nações Unidas referente à tortura e reiterar o apoio à preparação de uma Convenção da OEA para definir a tortura como crime internacional.

O texto recebeu aprovação de 19 Estados-Membros, ocorrendo dois votos contrários - Uruguai e Paraguai - e cinco abstenções: Chile, Argentina, Brasil, Santa Lúcia e Guatemala.

No Brasil, D. Paulo Evaristo Arns enviou à Nunciatura Apostólica um longo relatório sobre o desaparecimento ocorrido em Porto Alegre. D. Carmine Rocco respondeu dizendo que "faria o possível para alcançar solução favorável ao caso em apreço". Mas, em se tratando de D. Carmine, nada de "concreto" se deveria esperar.

Mesmo diante da insistência das Organizações das Gentes e do empenho reiterado das Igrejas de Deus, o Brasil e o Uruguai se mantinham numa insolente atitude de intransigência e inoperáncia, infensos a um debate aberto, demonstrando que o Cristo afixado às paredes de quase todas as repartições públicas só descia quando empunhado -- para exorcizar as condenáveis seitas totalitárias "inspiradas pelo demónio", "amarelo" ou "vermelho" -- pelas mãos calejadas de crimes e torturas, enquanto bocas espumantes de ódio vociferavam estar defendendo a civilização ocidental e crista.

E, em seu brandir, derrubam Cristo ao chão e o pisoteiam com suas botas diabólicas e, abominando as ideias cristãs de igualdade, fraternidade e amor, fazem com que a cruz que empunham se transforme numa cruz económica.

Essa cruz foi usada ontem por Hitler, mas hoje, aqui no Cone Sul, passou às mãos dos Videla, dos Pinochet, dos Gavazzo, dos Garcia Meza, dos Busch e dos Stroessner. E, como nos provará o futuro, também por Reagan, mais por interesse dos grupos económicos multinacionais do que por vontade própria, porque não creio que um presidente condicionado tenha vontade pessoal.

Dentre as intervenções de entidades estrangeiras, cabe uma referência especial às iniciativas que desenvolveu a Federação dos Trabalhadores Metal-Mecânicos de Milão no sentido de obter a libertação de Lilian e Uniyersindo.

A respeito, manifestaram-se ainda Deputados da Venezuela, França, Holanda, Itália, México, bem como o Senador uruguaio Wilson Ferreira Aldunate, chefe do Partido Nacional, que denunciou o seqüestro e reclamou também pela libertação do Gen. Líber Seregni.

Um ano depois da ocorrência, o seqüestro continuava ocupando, aqui no Brasil, as primeiras páginas dos jornais, além das permanentes referências nos noticiários de rádio e televisão.

Em março de 1979, um grupo de abnegados, com base na urgente necessidade de prestar ajuda aos sofridos povos do Cone-Sul -- com a liderança de Jair Krischke, Celso Franco Geiger e Pé. Albano Thrink -- resolveu fundar o Movimento de Justiça e Direitos Humanos, entidade que veio preencher uma lacuna, pois a Ordem dos Advogados tinha suas atribuições restritas, em virtude de seus objetivos específicos, e a Comissão de Justiça e Paz do Rio Grande do Sul se mostrava inoperante e habitualmente arredia no exame de problemas que envolvessem contestadores de regimes militares.

Algum dia se fará a liistória do Movimento de Justiça e Direitos Humanos e se ficará sabendo o quanto essa entidade trabalhou e a quantos -- até agora, certamente várias centenas -- prestou socorro.

Entre os episódios que constam em seu currículo, é de se destacar o do atendimento prestado às mães da praça de Maio, as mulheres conhecidas como locas de Ia pluza de Mayo, para que conseguissem uma audiência com o Papa João Paulo II.

Depois de terem estado em Roma e em Puebla, não tendo logrado êxito em suas tentativas de avistarem-se com o Pontífice, não desistindo, vieram a Porto Alegre. Por intermediaçao de Jair Krischke, do Deputado Antenor Ferrari, Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, e do bispo D. António Cheuiche, a entrevista foi realizada. Nessa oportunidade, em solidariedade a Da. Lília, juntamente com os documentos relativos às pessoas desaparecidas na Argentina, entregaram ao Papa um dossiê sobre o caso Lilian e Universindo.

Outras inúmeras circunstâncias vividas pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos estiveram relacionadas com a coleta de dados e depoimentos de quase meia centena de familiares de pessoas desaparecidas no Uruguai.

Tal problema se constituiu de forma tão grave e desumana que, à semelhança das iniciativas desenvolvidas pelas locas, os parentes de uruguaios desaparecidos fundaram em Paris uma associação para tratar do assunto, sendo permanentes na Europa as denúncias, por parte de emigrados, sobre desaparecimento de cidadãos uruguaios.

Esses casos somavam-se aos milhares de situações semelhantes ocorridas no Paraguai, no Chile e, de modo especial, na Argentina. Tanto, que a Subcomissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, com sede em Genebra, sensibilizada pelo vulto da questão e movida pêlos apelos humanitários, em 29 de fevereiro de 1980, criou um grupo de trabalho especificamente encarregado de tratar de casos de pessoas desaparecidas (Resolução nº 20).

Em agosto, a Coordenadora parisiense da Associação de Familiares de Uruguaios desaparecidos -- constituída pelas senhoras Maria del Carmen Almeida de Quinteros, Marta Ensenat e por Daniel Gatti -- enviou à Subcomissão da ONU uma lista contendo os nomes de 113 cidadãos uruguaios que desapareceram na Argentina; 2, no Paraguai e l 2, no próprio Uruguai. Além disso, havia a relação de 6 crianças desaparecidas na Argentina e 6 presumivelmente nascidas em cativeiro.

Nesse sentido, foram enviados ao Brasil, em épocas diferentes, mas com idêntico objetivo, um advogado argentino -- Leandro Despuit -- e um casal de advogados uruguaios -- Edgardo Carvalho Silveira e Maria Helena Martínez -- todos residentes na Europa.

O primeiro contato foi estabelecido com o Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Ur. Eduardo Seabra Fagundes, e, posteriormente, com o Movimento de Justiça e Direitos Humanos, em Porto Alegre, pois era de extrema importância que se colhessem os depoimentos de pessoas que tinham familiares desaparecidos.

Tendo em vista a distância entre Montevidéu e o Rio de Janeiro, bem como a impossibilidade de as pessoas serem ouvidas no território uruguaio, a melhor alternativa seria a tomada de seus depoimentos em Porto Alegre. Nesse caso, o Movimento atuaria coadjuvando e assessorando a própria Ordem dos Advogados.

Assim, em 27 de outubro de 1980, na sede do Conselho Federal, sob a direçao do Presidente Seabra Fagundes - presentes o SecretárioGeral, Dr. Bernardo Cabral, o Dr. Thierry Mignon, do Movimento Internacional de Juristas Católicos e Pax Romana, o Dr. Willem Boogard, professor de Direito Penal da Universidade de Utrech, na Holanda, e da Secção holandesa do Secretariado Internacional de Juristas pela Anistia no Uruguai, incluindo-se o autor, como representante do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul e o Dr. Belisário dos Santos Júnior, representante do SIJAU - deu-se início à ouvida dos depoimentos.

Em primeiro lugar, depôs Maria dei Carmen Almeida Quinteros, mãe de Helena Quinteros, que fora sequestrada pelas Forças Conjuntas uruguaias do interior da Embaixada venezuelana em Montevidéu; após, Milka Gonzales Peres, que teve sequestrado em Buenos Aires seu filho Rubem Prieto Gonzales; Martha Castilla Muttoni de Zaffaroni, mãe de Jorge Zaffaroni Castilla, casado com Maria Emitia Zaffaroni, que foram sequestrados com sua filha, Mariana Zaffaroni, em Buenos Aires, onde estavam refugiados; e, por último. Violeta Malugani Torena, que teve seu filho, Miguel Angel Moreno Malugani, desaparecido na Capital argentina em 1° de outubro de 1976, poucos dias antes de viajar para o México, embora tivesse recebido concessão de status de refugiado outorgada pelo Alto Comando do Comissariado das Nações Unidas.

Os demais familiares de desaparecidos foram ouvidos em Porto Alegre, na presença das autoridades internacionais acima mencionadas, da diretoria do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, além do Desembargador Celso Franco Geiger e dos advogados Luiz Goulart, Mara Loguércio e Nora Tatsch.

Jair Krischke fez a entrega de toda a documentação ao Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, que a remeteu à Subcomissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas.

Nesses dias, o jornal "Zero Hora", pelo editorial assinado por Carlos Alberto Kolecza, proclamou Porto Alegre como a capital mundial dos Direitos Humanos.

Um último episódio que certamente constituirá capítulo na história do Movimento é o que se relaciona com a fuga da família Benecli para o Brasil.

Cláudio Benech, biofísico uruguaio de renome internacional, autor de várias obras publicadas e participante de inúmeros simpósios, inclusive alguns realizados no Brasil -- em São Paulo, Porto Alegre e Santa Maria -- havia sido sequestrado, em meados de 1980, de sua casa, em Montevidéu. Quase dois meses depois, sua mulher -- a médica Graziela Gulla de Benech -- e seus sete filhos, cinco dos quais menores, ficaram sabendo que estava preso e incomunicável numa unidade militar uruguaia.

A esta altura, o Movimento de Justiça e Direitos Humanos já havia denunciado seu desaparecimento.

Por ter cultura de nível superior e ser dotado de grandes conhecimentos, além de dono de grande capacidade de persuasão, Benech foi hábil em esboçar um quadro psicológico de militares, carcereiros e torturadores, chegando a saber o que devia fazer a fim de granjear-lhes a simpatia e percebendo até onde poderia ir sem comprometer seus amigos e a própria dignidade.

Os militares pretendiam que ele aceitasse comparecer à televisão a fim de fazer um pronunciamento público de arrependimento, abominando o "marxismo internacional", bem como os sentimentos antipatrióticos daqueles que haviam assumido posições contrárias à nova ordem imposta, em 1973, a qual visava a salvar o país do caos, do terrorismo e da subversão, especialmente porque estava próximo o Plebiscito Constitucional.

Benech aquiesceu na proposta, mas exigiu que cessassem as torturas e que lhe dessem a oportunidade de visitar sua mulher. Estava aí a única linguagem que os torturadores poderiam compreender - o apelo sexual. Benech dava a entender que não podia passar sem a prática do sexo, partindo da constatação, que fizera, de que um torturador, quando não dispõe de uma vitima sob seu tacão, pode passar horas e horas olhando para um ponto qualquer, o que indicava uma conduta socialmente doentia, porque reveladora de que sua mente estava totalmente descondicionada de conceitos, emoções e objetivos vitais próprios. Assim sendo, a linguagem erótica era a única que poderia proporcionar o degelo e alguma compreensão.

Aceitando, de certa forma, suas condições, permitiram-lhe que passasse o Natal de 1980 com sua família. À noitinha, um policial o acompanhou até sua casa e lhe disse que voltaria às cinco da manha para buscá-lo.

Mas é justamente nesses momentos que o homem demonstra sua capacidade de raciocínio rápido e de decisões imediatas. O policial ainda não se afastara de todo e Benech, tomando o carro, deu uma volta ao quarteirão. Não houve qualquer incidente, o que comprovava a inexistência de vigilância. Foi a partir daí que montou seu plano de fuga: tomaria a família e ultrapassariam a fronteira na condição de clandestinos. Uma vez do outro lado . . . Bem?! . . .

Bem, a primeira medida a tomar era conseguir nova licença -- agora para as comemorações do Ano Novo. Com a esposa, esboçou os detalhes, até que, às cinco horas, o soldado que veio buscá-lo estava tão bêbado que a Dra. Graziela teve que medicá-lo.

Logo após essa ida de Benech a casa, os preparativos começaram a ser tomados, pois do lado brasileiro uma organização já estava atenta, de olhos bem abertos para o que sucederia no vértice do Cone Sul.

Tudo isso porque a Dra. Graziela, que era pediatra, havia salvo a vida do filho de um amigo nosso. E esse amigo comum logo se transformara em emissário, assumindo o encargo de estender o plano até o território brasileiro. Assim, viajou de imediato a Porto Alegre, onde acertou os detalhes com Jair Krischke.

Em vista disso, deveríamos aguardar o Dr. Benech na rua central que divide a vila brasileira do Chuí da cidade uruguaia homónima, na madrugada do dia l P de janeiro. O fugitivo, por sua vez, transporia a barreira uruguaia, localizada a dois quilómetros da fronteira, até as cinco horas da manhã, quando estaria ocorrendo o retorno do soldado para buscá-lo em sua residência.

Efetivamente concederam licença a Benech, como se esperava, para visitar a família no Ano Novo, com a condição de que, nos primeiros dias de janeiro cumprisse sua promessa de fazer a proclamação de arrependimento e a conclamação de apoio ao Governo.

Chegou a casa às 22 horas, e só nesse momento seus filhos mais velhos -- Juan Cláudio e Mário David -- tomaram conhecimento do que iria suceder e de que acompanhariam os pais, pois que, se ficassem, seriam presos e torturados. Isso era improvável que ocorresse com os demais. Apesar disso, todos foram levados à jefatura: Alejandro, de 15 anos; Adela Ester, de 11; Pablo Ignacio, de 10; Nicolas, de 5 e Javier, de um ano e meio. Ao saber disso, mais tarde, o pai comentou, com ironia, a respeito do mais novo, Javier:

- Claro que tinha que ser interrogado. Já sabia dizer "papa" e "mama"! . . .

Quando todos estavam prontos, Benech tomou o volante de seu pesado e velho carro -- eram 23h 30min e a fronteira estava a 350 quilómetros. Rumaram para Punta dei Este.

Uma porção da família partia. A outra ficava em Montcvidéu. Os corações estavam despedaçados e as mentes aturdidas. As lágrimas rolavam fáceis e a tensão os dominava, pois corriam para a vida ou para a morte. Não haveria retrocesso.

Em Punta dei Este trocaram de automóvel. Um amigo os conduziria até a fronteira, enquanto a esposa desse amigo retornava a Montevidéu com o carro dos Benech. Dessa forma, a polícia não cogitaria de uma viagem para fora do País. Era uma forma de despiste.

Enquanto seu carro voltava a Montevidéu, Benech, a mulher e os filhos torciam para que o antigo Mercedes andasse mais depressa. Faltavam ainda duzentos quilómetros para chegarem á fronteira.

Em Porto Alegre hav íamos feito, em casa do Jair, uma reunião que se prolongara até altas horas da madrugada do dia 30. Do nosso lado tudo estava bem. Eu inclusive, a fim de prevenir qualquer situação embaraçosa, me comunicara previamente com o Ur. Françüis Füuinat, do Alto Comissariado. Assim, caso ocorresse algum imprevisto, o órgão das Nações Unidas intercederia.

Viajamos para Cliuí em quatro automóveis. Jair Krischke havia inclusive solicitado a companhia de alguns jornalistas, pois assim nos sentiríamos mais seguros.

Chegamos já de noite ... e então começou a angustiante espera. O Staub e sua mulher deveriam permanecer num ponto previamente combinado, abraçados, como um casal de namorados. O Quaresma do "O Globo", o Kolecza, da "Zero Hora", acompanhado de seu fotógrafo, mais o Miguel Palaoro, ficariam nas imediações. O Jair, a Nora Tatsch e eu aguardaríamos num paradouro, a dois quilómetros da fronteira e a 150 metros do Posto da Polícia Federal.

As horas se arrastavam . . .

Próximo à meia-noite, o restaurante em que estávamos foi invadido por alguns policiais. Depois de conversarem, vimos que estavam apenas procurando cerveja e champanha para comemorarem a entrada do ano.

Perto das três horas retornaram para se reabastecerem.

Eram já 5h 20min quando decidi pedir um café. A esta altura, dois ònibus com excursionistas argentinos estavam estacionando na Polícia Federal.

Nora, com um binóculo, não se cansava de olhar para a estrada, pois o restaurante, localizado no segundo andar do prédio, oferecia uma visão ampla.

Quando chegou meu café, olhei para os outros e exclamei pessimista:

-- São cinco e vinte. Se não chegaram até agora, não chegam mais;

a operação falhou.

A Nora, que continuava de binóculo em punho, viu que dois automóveis passavam ao largo da Polícia Federal e continuavam sem parar. Deu um salto:

-- Aí vem eles!

Descemos para a parte fronteira do paradouro. O Staub estacionou ao nosso lado. Um homem desceu do carro, olhou para o céu, viu que o dia começava a clarear. Cerrou os punhos, levantou os braços e exclamou:

-- Enfim a liberdade!

Era o Dr. Benech. Haviam transposto a barreira policial uruguaia em cima da hora. Segundos após, chegava um terceiro veículo, com seus filhos. Benech os cobriu de abraços e beijos. Com lágrimas, acompanhávamos, profundamente comovidos aquelas expansões do cientista, e intensamente satisfeitos por podermos participar daquele ato.

Eu lembrava de quantas vezes havia imaginado ou presenciado cenas idênticas, em livros ou no cinema, sobretudo em cenas de fugitivos nazistas, e percebia como alguns traços e procedimentos dos regimes políticos são cíclicos, apesar de se acreditar que a história humana tenda ao aperfeiçoamento. Todavia as reminiscências da guerra realmente não me atingiam muito a fundo. Minha satisfação também se prendia ao fato de que o seqüestro de Lilian e üniversindo estava sendo cobrado.

Mais tarde, obtivemos licença do Consulado uruguaio em Porto Alegre para que o restante da família viajasse para o Brasil, encargo que foi assumido pelo Dr. François Fouinat. Nesse episódio, deve-se também destacar o decisivo concurso prestado pela Cônsul do Uruguai em Porto Alegre, Esteia Armand Ugon, que esteve interessada em solucionar o problema da forma mais rápida possível.

Com respeito às providências do Movimento relativas ao caso Lilian e Üniversindo, Jair Krischke havia convocado uma reunião da Diretoria, oportunidade, em que propôs a realização de um ato público de solidariedade no dia 12 de novembro, data que assinalaria o transcurso de um ano do seqüestro.

A ideia foi aprovada e, na organização, integrou-se o Comité Brasileiro pela Anistia no Rio Grande do Sul, na condição de co-participante. Após fixação do programa, foram expedidas as comunicações a entidades e pessoas que deveriam comparecer como convidados especiais.

O ato público seria dividido em duas partes. A primeira constaria de um painel sobre os sistemas repressivos do Cone Sul. Na segunda haveria um culto ecuménico.

No dia l 2 de novembro, a sala do plenário da Assembleia Legislativa estava lotada. Entre os presentes, muitos que tinham participado do andamento do caso: o Dr. Jean Louis Weil; o Rev. Jaime Wright, ministro da Igreja Presbiteriana do Brasil e representante do Comité de Defesa dos Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo; D. Arthur Kratz, Bispo Primaz da Igreja Episcopal do Brasil; Dr. Celso Franco Geiger, representante da Comissão de Justiça e Paz; Dr. Mariano Beck, Dr. Marcus Melzer e Dr. Rovflio Breda, conselheiros da OAB; Carlos Gíacomazzi, Presidente da Assembleia Legislativa; Deputados Ivo Mainardi, Romildo Bolzan, Nivaldo Soares, José Fogaça e Antenor Ferrari; Padre Albano Thrink e Pastor Bertholdo Weber, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana; Luís Cláudio Cunha e João B. Scalco;os Vereadores Marcos Klassman, António Cândido e Glénio Peres; Da. Líliae Homero Celiberti; jornalistas, representantes de entidades políticas e de anistia, além de populares.

O ato iniciou-se com a palavra de Luís Cláudio, que discorreu sobre a importância desempenhada pela imprensa no esclarecimento dos episódios ligados ao seqüestro.

As atividades desenvolvidas pela Comissão da Ordem dos Advogados encarregada de viajar ao Uruguai foram o tema da exposição feita por Mariano Beck, que, de forma veemente, reclamou providências do Governo no sentido de atuar concretamente com vistas à devolução das vítimas ao Brasil.

O Deputado Giacomazzi, por sua vez, declarou que haveríamos de permanecer unidos no enfrentamento do arbítrio, até que efetivamente ele seja retirado da cena política, e sejam dadas a nossa Pátria condições reais de novamente honrar o compromisso que assumira ao assinar a Declaração dos Direitos Humanos.

Jair Krischke destacou a angustiante situação das populações do Cone Sul, cuja vida decorre em permanente clima de terror, em vista da repressão e do arbítrio de que se revestem os Governos ditatoriais.

O Deputado Nivaldo Soares relatou com minúcia e precisão as providências desenvolvidas pela Comissão Parlamentar de Inquérito que presidira, elogiando a permanente vigilância e colaboração da imprensa, dos jornalistas e dos advogados.

Da fala de Jaime Wright destacou-se a ênfase dada à sofisticação dos métodos repressivos adotados na coerção e na restrição das liberdades e direitos individuais, lembrando que fora instalado em Santiago do Chile um computador com o objetivo de controlar todo cidadão que reclamasse em favor da democracia e pela dignidade humana, terminou formulando um apelo em favor das crianças desaparecidas que nasceram em cárceres dos países do Cone Sul.

Jean Louis Weil, historiando as técnicas de seqüestro utilizadas pelas autoridades uruguaias, com elas relacionou os acontecimentos que se desenrolaram em Porto Alegre, deixando nítidas as semelhanças e, conseqüentemente, sua autoria. Reafirmou que o seqüestro fora preparado e desenvolvido por operação conjunta das autoridades de ambos os países -- Uruguai e Brasil -, informando que, na sessão de outubro da Organização dos Estados Americanos, o crime pretextou violento repúdio dos participantes. Asseverou a inexistência de liberdade para o exercício da atividade dos advogados na República Oriental do Uruguai, e que os verdadeiros defensores de Lilian e Universindo eram os advogados brasileiros. Ao finalizar, relatou que o representante uruguaio junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Carlos Giambruno, negara o seqüestro com a desculpa de que o Uruguai não dispunha de recursos financeiros para esse tipo de operações. A falsidade do argumento, ressaltou o advogado francês, cai por terra quando se sabe que mais de cinquenta por cento do orçamento uruguaio se destina às Forças Conjuntas e à Polícia.

Após, deu-se início ao culto ecuménico.

O Reverendo Jaime Wright começou com o texto de ísaías que condena o culto hipócrita:

"-- de uma liturgia que nada diz sobre a maneira de encarar o dia-a-dia;

-- de uma religião ensimesmada que ignora as relações de justiça entre os homens;

-- Deus está farto, está cheio daqueles que macaqueiam a piedade, daqueles cuja religião se restringe à sacristia, daqueles que rezam piedosamente dentro do templo, mas que lá fora oprimem o povo e abusam do fraco.

Precisamos encarar a verdade de que o silêncio diante dos males da ordem social; de que a passividade diante das vítimas da crueldade e da violência e de que toda a omissão produz um vasto e profundo abismo entre a piedade da sacristia e o mal que se tolera nas relações sociais.

A preocupação da Igreja pelos oprimidos é ecuménica.

Aí está uma maneira de sair da sacristia e colocar em prática a justiça recomendada pelo Profeta."

A seguir, passou-se à leitura do texto preparado pelo Pé. Albano, com .invocações que se alternavam às citações de artigos da Declaração dos Direitos Humanos e preceitos bíblicos. As várias partes eram proferidas por diferentes pessoas, o que acentuava o comovente caráter ritual do texto:

"-- Todos os homens nascem iguais e livres em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade, (Art. l P).

-- Senhor, entre nós, nem todos os homens nascem livres e nem iguais em dignidade e direitos, respondia outro participante.

-- Todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Não matarás, diz o Senhor nosso Deus.

-- Pelo Pé. João Bosco Penido Burnier, assassinado com duas balas no crânio;

-- Por Frei Tito de Alencar, tão duramente torturado, que não sobreviveu à deterioração psicológica em que se encontrava.

--Por Simao Bororó e Pé. Lukembeim, assassinados em 1976, no Mato Grosso.

-- Por Santo Dias da Silva, operário e agente pastoral, de São Paulo, recentemente assassinado;

-- Por Paulo Stuart Wright. desaparecido em São Paulo;

--Por todos os políticos, operários, militares, religiosos, mortos arbitrariamente em nome da Segurança Nacional;

-- Pêlos familiares de todas as vítimas da violência e da injustiça.

Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante (Art. 5º).

-- Por Lilian Celiberti e Universindo Diaz, para que a presença de Deus os conforte em seus sofrimentos;

-- Por Camilo e Francesca, pêlos pais e familiares de Lilian e Universindo, para que o amor de Deus e a solidariedade dos irmãos os sustente em tamanho sofrimento e provação.

Todos os homens são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteçao da lei (Art. 7°). -- A extrema pobreza generalizada é o triste e doloroso fruto desta discriminação e adquire na vida real rostos muito concretos.

Rostos de crianças, precocemente golpeadas pela pobreza e suas consequências mentais e corporais irreparáveis;

Rostos de indígenas e de afro-americanos, que, segregados e condenados a situações desumanas, são os mais pobres dentre os pobres.

Rostos de camponeses e bóias-frias, de posseiros e meeiros, em situação de dependência interna e externa. Rostos de operários, mal remunerados, sem possibilidades de defender seus próprios direitos. Rostos de subempregados, de desempregados e de marginalizados, muitas vezes amontoados na periferia de nossas cidades.

Rostos de anciãos, frequentemente postos à margem da sociedade, do progresso e da produção. Lembra-te, Senhor de tuas feições estampadas nas feições sofridas de tantos milhões de filhos teus. Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado (Art. 9º).

A América Latina tornou-se um dilúvio de sofrimento por causa das prisões, detenções, exilamentos e desaparecimentos.

Quantos são?

Só Tu, Senhor, o sabes.

Todo homem tem direito, em plena liberdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação contra ele (Art. 10).

Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, ou seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Todo homem tem direito à proteçao da lei contra tais interferências ou ataques (Art. 12).

Rezemos por Dom Helder, Dom Paulo Evaristo, Dom Ivo e por todos aqueles que sofreram e sofrem ataques caluniosos à sua honra e reputação."

Ao final de cada oração havia um estribilho que era recitado em coro:

"Escutai, Senhor, a prece de um povo aflito que quer Justiça."

Enquanto se desenrolava a cerimónia, meu pensamento estava percorrendo os cárceres uruguaios. Lembrava-me de Lilian, de Universindo, de inúmeros outros - sequestrados sem rosto, vítimas sem feições, humilhados sem perfil, cujo rosto, cujas feições e cujo perfil se uniformizavam na dor e no sofrimento que eu apenas imaginava -- inclusive crianças cuja inocência era afrontada pela maldade, pelas sevícias, pela dor e pelas privações. Privações dos sentidos, privações dos afetos: fome -- tortura -- dor -- orfandade.

Ali, bem na minha frente, estava um casal que sofria pela separação da filha, pelo sofrimento dos netos, e suplicava aos céus pelo término daquele macabro espetáculo a que tantos corações empedernidos e tantas vidas sem sentido se dedicavam.

Em minha imanaçao desenhavam-se imagens confusas de un mundo ambivalente, em que o rictus da dor se contrapunha às crispaçoes de um sadismo inadmissível, em que os vincos do sofrimento se misturavam á mímica grotesca de verdadeiros monstros humanos.

Todos, diante de meus olhos, rezavam de mãos dadas, mãos luteranas, mãos presbiterianas, mãos católicas, cristãs, judias, episcopais, e até mãos marxistas - todas porém iguais na forma, irmãs na expressão, maduras na crença de um mundo melhor, de compreensão, de amor, de igualdade -- sem tortura, sem injustiça, sem sevícia, sem humilhação.

Por isso, todas suplicavam pelo fim da barbárie, dos seqüestros, dos assassinatos:

"Ouvi, ó Senhor, a prece de um povo angustiado que apenas quer Justiça!"


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