Neonazismo
O nazismo como colonização da Sociedade

Luís Dario Ribeiro *


Historiador, pos-graduado pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, é professor de Historia Contemporánea da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Desenvolve pesquisas ñas áreas de historia contemporánea. Organizou o livro "Contraponto: Ensaios de Historia Imediata".

Os efeitos da derrota da Alemanha vão fazer com que se criem condições de onde emergiram movimentos nacionalistas radicais de direita, um dos quais será o nazismo, com características comuns aos outros, mas com algumas peculiaridades: uma visão de mundo mítica, que acredita no mito da raça superior e no destino desta raça e uma visão de mundo nacional racista, ariana, radicalmente excludente, voltada para a dominação interna. O nazismo, desde a sua origem, vai excluir do direito todos aqueles que não forem arianos, que não forem alemães raciais. Em Mein Kampf de Hitler, escrito em 1924, fica bem clara a ideia de que o mundo tem que pertencer a esta raça superior, aos alemães. Além disso, é um movimento que tem na visão de mundo totalitária e heróica, o princípio áo füher, do líder, do herói, do demiurgo, capaz de criar as condições para que a raça alemã, a raça superior, consiga conquistar seu lugar no universo, que não é nada mais nada menos que o controle do planeta. O movimento, em sua qualidade de movimento nacionalista e racista, substitui as classes pela raça, sendo um movimento pluriclassista, cujos membros acreditavam na existência de uma comunidade ariana que englobava membros de diferentes status sociais com um ponto em comum: pertenciam à comunidade ariana. Mas, mesmo sendo pluriclassista (vamos encontrar segmentos proletários, da burguesia, dos grandes proprietários de terra), fundamentalmente predomina a classe média, tanto entre os seus militantes quanto entre os seus eleitores. Esse "comunitarismo racial", na medida em que substituía o conflito de classes pelo de raças e pela comunidade ariana, identificava-se como anti-semita, anti-eslavo e antibolchevique (sendo o bolchevismo, considerado como o instrumento mais apurado da manifestação da conspiração judaica).

Ainda, esse movimento era dogmático e idealista. Idealista porque era movido pêlos ideais racistas e porque acreditava que a origem das coisas estava nas ideias; e era dogmático porque desde a sua origem ele não admitia a discussão de seus princípios, nem a discussão das suas linhas, que deveriam ser impostas pelo caudilho, pelo líder e, a partir daí, assimiladas e colocadas em prática. Era socialmente conservador, na medida em que propunha a conservação da comunidade racial ariana, a comunidade germânica. Também se caracterizava por ser um movimento baseado na política de força, a materialização da sua superioridade, exposta nos princípios do darwinismo social racista. Era expansionista, porque pretendia a construção da Grande Alemanha, através da conquista do seu espaço vital, através da incorporação dos territórios onde existiam populações de origem alemã ao seu território imperial. Tinha como característica marcante, juntamente com o racismo e o autoritarismo, o fato de que era um movimento revanchista contra o Tratado de Versalhes, um forte atrativo na Alemanha da época.

Pode-se dizer que o nazismo alemão, enquanto visão de mundo e movimento com essas características, é uma radicalização e um transbordamento das posições do imperialismo capitalista, pois vamos encontrar tais características (não tão explícitas e integradas), na ideologia do imperialismo e na da conquista colonial, que marcava a sociedade europeia. Mas não podemos dizer que o nazismo é a expressão de apenas uma ou a combinação de algumas destas características. Para caracterizar um grupo como nazista, é necessário todo esse complexo e, mais ainda, uma agressividade em relação aos outros grupos dentro de uma determinada sociedade. Na medida em que esse movimento e essa visão de mundo é uma radicalização e um transbordamento do imperialismo, ele irá propor a reorganização da sociedade, dentro dos moldes coloniais.

Mas, ao contrário dos europeus e norte americanos em processo de expansão ou de consolidação do seu domínio imperial, os nazistas, que não têm possibilidade desses espaços exteriores, lançam a política de colonizar a própria sociedade onde estavam situados. Esse projeto de reorganização da sociedade sobre moldes coloniais, que aparece no Mein Kampfáe Hitler, propõe, em primeiro lugar, dividir a população da Alemanha, em duas categorias de cidadãos: os de primeira classe e os de segunda classe quanto à questão dos direitos, tanto políticos quanto sociais. Em segundo lugar, contrapõe a categoria de cidadão às categorias de súditos e de estrangeiros. E em terceiro lugar, transforma e reorganiza a sociedade alemã dentro desses princípios, fazendo dela uma colónia do capital monopolista alemão e incorporando regiões da Europa onde existiam fortes minorias alemãs ao Estado que pretendia criar.

Num primeiro momento, que vai durar até 1923 e vai ser o de formação e de desenvolvimento do nazismo, tanto ao nível da organização quanto do amadure

cimento da visão da sua visão de mundo, o movimento vai se caracterizar, principalmente, por ser um movimento nacionalista conhecido pelas suas manifestações de rua, por seu radicalismo antidemocrático e por seu antibolchevismo. Sendo o mais radical e sectário dos movimentos nacionalistas alemães e, significativamente, o catalisador dos alemães imigrados para o Reich após a I Guerra Mundial, a Revolução Russa e a dissolução do Império Austro-Húngaro. Esse partido (esse movimento, melhor dito, ele não se reconhece como partido até 1923) vai ser basicamente formado por ex-soldados nacionalistas e por imigrados do Leste Europeu de origem alemã. Podemos identificar neste movimento um antiparlamentarismo e um golpismo marcantes e um certo regionalismo bárbaro regional. Só após 1923 é que ele se transformará no partido nacional que abrange todo o território da Alemanha.

Esse movimento se caracteriza pelo fato de ser um ferrenho inimigo da República de Weimar, que expressa aquilo que ele considera negativo e que possui características judaicas: ela é liberal, é socializante, é democrática, é parlamentar e aceita as imposições do Tratado de Versalhes. Até 1923, o nazismo vai se caracterizar por ser um movimento terrorista que organiza um conjunto de homens armados e uniformizados, chamados de SÁ (Seções de Assalto) que irão utilizar da violência física contra a esquerda e, na tentativa da tomada de poder, vão conquistar o apoio da grande burguesia da Bavária, receosa da revolução e da reinstalação de um soviete. A Bavária, no início de 1920, enfrentou a tentativa de instalação de uma república soviética, semelhante à russa, república esta que foi destruída graças à atuação dos corpos francos. A tentativa de revolução na Bavária criou na burguesia esse tremendo medo, que fez com que eles apoiassem os nazistas, o grupo mais resoluto no combate ao bolchevismo. Embora socialmente conservador, o grupo se caracterizava por ser moderno na forma de se organizar e na sua apresentação. Adotava meios de conquista das massas que não eram ainda usuais (grandes comícios públicos, cercados de toda uma parafernália de instrumentos, como alto-falantes bem como recursos simbólicos que não eram explorados, desfiles militarizados, utilização do rádio, de veículos automotores para mostrar à sociedade que eram um movimento dinâmico, moderno, em consonância com os tempos).

Esse partido, que era, até 1923, antiparlamentar, tanto na sua estratégia quanto nas suas táticas, tentou, neste ano, num momento de crise, um golpe objetivando tomar o poder na Bavária e, a partir daí, expandir-se para o território da República Alemã. No entanto, o golpe fracassou porque os membros do governo, uma vez libertados, lançaram uma contra-ofensiva e dissolveram o esquema de Hitler. Este vai para a cadeia, condenado a cinco anos de prisão, significativamente uma pena leve, sendo libertado pouco tempo depois. Durante a prisão, Hitler escreve o livro Mein Kampf, que é a sistematização da prática que eles levavam e da visão de mundo do nazismo. Após o golpe e a sua prisão, Hitler muda de tática, aderindo à luta parlamentar, mas ele mantém a sua meta estratégica: a conquista absoluta do poder e a sua instalação como fruto do direito da força, baseado no darwinismo social, como um direito de raça, já que eles consideravam-se os mais puros e melhores representantes da raça germânica não degenerada. Como tais, consideravam ter o direito de impor-se à sociedade e de impor a força do seu poder sobre o resto da sociedade.

O segundo ponto da sua estratégia que permaneceu inalterado foi o fato de que eles pretendiam eliminar o capital que chamavam de usurário, identificado como capital judaico. O capital estrangeiro, independente do fato de ser emprestado ou aplicado efetivamente na Alemanha, era bem aceito e recebido. Ainda faziam parte da sua estratégia os seguintes pontos: a eliminação do bolchevismo, do marxismo e dos judeus, considerados os elementos responsáveis pela degeneração da comunidade alemã; a eliminação da república, considerada fruto da conspiração judaica, e a vingança da traição da I Guerra Mundial. Subjazia a estes objetivos de sua estratégia - não abandonados quando aderiram à luta parla- mentar - a colonização da sociedade alemã por parte desses representantes racialmente puros da população e socialmente não degenerados, que eram os nazistas, e a da colonização da Europa Oriental - considerada espaço vital alemão e tido como território alemão usurpado pela conspiração judaica em benefício dos eslavos e judeus. Finalmente, a reorganização da sociedade alemã, instalando a comunidade ariana, com plenos poderes e impondo sobre a sociedade, o ónus que acompanha os cidadãos de segunda ou de terceira classe, os súditos e os estrangeiros. Nestes segmentos entravam os operários de esquerda, as minorias étnicas, sexuais, os doentes, enfim, todos aqueles grupos que a antropologia chama de "outros", em relação ao "nós", todos aqueles que são socialmente diferenciados.

A mudança de tática manifestada na adição da perspectiva parlamentar vai auxiliar na expansão do nazismo, em dois momentos. O primeiro ocorreu no rastro da crise de 1923 e da reforma monetária de 1924. O segundo, no rastro da crise de 1929, surgida na Bolsa de Nova Iorque, e da depressão posterior a essa crise. A crise de 1923 foi originada pela ocupação do vale de Ruhr, produtor de carvão na Alemanha, por franceses e belgas, assim como pela organização de uma resistência passiva nessa região. Resistência que contou com a participação das SÁ e também dos comunistas. Consistia na paralisação da economia da região do Ruhr numa greve geral por parte dos trabalhadores, financiada pelo Estado alemão. Tal empreendimento piorou ainda mais a situação Estado alemão que constantemente tentava a renegociação do Tratado de Versalhes, para assim poder desenvolver, novamente, o país. Mas, contrariamente, o que termina acontecendo é a bancarrota da Alemanha através de uma inflação galopante, que vai possibilitar que os empresários paguem os débitos. Esta inflação galopante vai proporcionar a ruína da classe média urbana que vivia de rendas fixas e da classe média rural, os camponeses ricos, que viviam da venda da produção agrícola. Essa classe vai se transformar a partir daí num grupo depauperado na sua maior parte, proletarizado.

A crise de 1923 resulta praticamente na eliminação da classe média na Alemanha, que se transforma em um semi-proletariado ou num proletariado; isto vai ter efeitos posteriores na expansão no nazismo. Essa classe média bem educada possuía um sentimento de superioridade e não não irá aceitar ter ficado tão pobre quanto os operários. Não admite que é igual aos operários, que fora aniquilada da face da Alemanha, e que agora ela não passava de um segmento de trabalhadores, ocupando um lugar distinto nas empresas e reduzida a um grupo de elementos desclassificados, miseráveis, que deverão viver praticamente da caridade pública. A ruína da classe média, causada pela inflação, vai ser acompanhada por um desemprego massivo dos operários, decorrente da paralisação da produção.

Se os resultados dessa crise são, por um lado, a ruína da classe média e o desemprego dos operários, por outro lado, serão, também, o fortalecimento dos "konzem", aquele grupo de cartéis que, na medida em que, com a crise, passam a pagar os credores com uma moeda desvalorizada e destinar boa parte da sua produção para o exterior, devido aos preços extremamente competitivos. Resulta daí, também, o aumento da concentração de capitais, na medida em que os pequenos proprietários não vão conseguir enfrentar a inflação e vão ser liquidados, gerando resultados positivos para os capitalistas, que irão livrar-se da concorrência dos pequenos e fortalecerão as suas associações. Serão beneficiados deste colapso monetário os banqueiros e os donos das reservas de moeda estrangeira utilizada para comprar mais bens dentro da Alemanha, que passam a se utilizar do seu papel para eliminar os concorrentes do capital monopolista na Alemanha. A crise vai levar à reforma monetária, em 1924, possibilitando que os bens da classe média alemã sejam comprados pêlos estrangeiros originários do leste, que haviam fugido da Revolução Russa, da crise e da indefinição do leste europeu, e traziam para a Alemanha recursos em moeda forte. No momento da crise, parte dos bens da classe média alemã passa para esses elementos. Isto vai favorecer, na Alemanha, o nacionalismo, além de intensificar a percepção anti-semita, porque parte desses imigrantes eram de origem judaica (polonesa e russa), que eram vistos, pelo alemão médio, intoxicado de nacionalismo racial e anti-semitismo, como a materialização da conspiração judaica.

Essa não era só a visão do nazismo, mas era também a do nacionalismo alemão da época. Não era apenas o Tratado de Versalhes, os operários socialistas, o capital "usurário" (uma entidade que planava no ar). Agora, em cada esquina, em cada quarteirão, era o imigrado que comprava os bens e as lojas dos elementos da classe média alemã falida. A crise provoca, assim, um profundo descrédito da República, incapaz de responder à invasão do Vale do Ruhr, que criou a crise como resultado de sua política de resistência à invasão.

A situação de crise na Alemanha será resolvida de duas formas: primeiro, através da reforma monetária e o surgimento de uma moeda alemã nova, baseada na capacidade de produção agrícola da Alemanha e não vinculada ao padrão-ouro; segundo, por meio do plano Daves, norte-americano, de auxílio à Alemanha. O Plano Daves divide a dívida de guerra alemã em várias parcelas que serão pagas ao longo do tempo, proporciona a concessão de grandes empréstimos que possibilitam à Alemanha comprar matéria-prima no exterior, dispõe de um capital de giro volumoso, pontos que deveriam servir de base para a reabilitação da Alemanha. O problema é que os empréstimos são de curto prazo, renováveis quase que anualmente e repassados pêlos bancos alemães como empréstimos de largo prazo. O resultado será que, em 1929, quando acontece o craque da Bolsa de Nova Iorque, originando uma situação de instabilidade e crise económica, começam a refluir os capitais para os seus países de origem e a economia alemã fica descapitalizada. Esses grandes empréstimos norte-americanos foram utilizados para modernizar, na Alemanha, o seu parque industrial, com a compra de equipamentos mais produtivos que possibilitaram a produção (num maior valor e num menor custo) e a modernização das atividades comerciais. O resultado foi a redução daqueles capitalistas que não eram caraterizados e que haviam conseguido resistir até a crise de 1923. Essa modernização do parque industrial gera, ainda, desemprego tecnológico. Um desemprego causado pela tecnologia, que aumenta, tremendamente, a capacidade produtiva do trabalho e que substitui mão-de-obra, reduzindo a necessidade de emprego. Numa situação de profunda crise, essas transformações proporcionam os mais dramáticos resultados.

Os empréstimos utilizados para modernizar o parque industrial alemão irão gerar o aumento da capacidade produtiva alemã, elevando-a a um nível incomparável na Europa. Mas, ao mesmo tempo, essa capacidade alemã vai estar bloqueada na sua realização, ou seja, no consumo dos produtos por ela produzidos. Isto porque, desde o fim da I Guerra Mundial, uma tendência nacionalista protecionista começa a emergir nos países desenvolvidos e em todas as regiões do planeta. Este protecionismo vai determinar que a Alemanha não encontre mercados para descarregar sua produção e de onde ela pudesse trazer matérias-primas baratas. O aumento da capacidade produtiva alemã, em virtude desse bloqueio na realização da produção, não será acompanhado pelo aumento do nível de empregos e pela recuperação dos bens e posição da classe média. Até 1929 a Alemanha não recupera o nível de empregos e sua classe média não consegue recuperar-se da proletarização. Essa situação vai fazer com que ocorra uma radicalização bipolar entre a esquerda e a direita e o crescimento dos setores radicais da direita (no caso, os nazistas) e da esquerda (no caso, os comunistas).

Essa polarização deve ser bem compreendida, pois ocorre num contexto de uma progressiva guinada geral da política tradicional alemã para a direita, que é resultante da batida em retirada dos elementos centristas burgueses. Significativamente, a partir daí, o Estado alemão passa a ser dirigido por direitistas nacionalistas. Além disso, resulta dessa crise o aumento do poder dos partidos nacionalistas de todos os matizes, bem como o aumento do poder do exército e do corpo de funcionários. Esses funcionários burocráticos e tecnocráticos tinham uma grande simpatia pelo nazismo. Os dois setores passarão a sabotar, a partir daí, a República de dentro, favorecendo a ascensão do nazismo.

Além desse quadro geral de radicalização bipolar, direitização da política alemã e aumento do poder do nacionalismo, do exército e do corpo de funcionários, há, também, o fortalecimento do NSDAP (Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães) em relação a 1919 e 1923: seu eleitorado cresce, aumenta o número dos membros do partido, surge e desenvolvem-se seus órgãos paralelos, como sindicatos e militância no movimento estudantil, mesmo nos estados considerados como "regiões vermelhas", com predomínio dos social-democratas e dos comunistas. Esse fortalecimento ocorre em parte porque os nazistas passam a ser identificados, por grande parte da população, como a única força capaz de recompor o orgulho nacional e como uma força nacional de direita, revolucio- nária, que não está comprometida como nada do que estava acontecendo na Alemanha naquele momento. Seu crescimento dar-se-á, também, porque a grande burguesia verá nos nazistas a única força nacional de direita capaz de resistir ao avanço do partido comunista, e de reimpor a sua ordem social.

COLONIZAÇÃO DA SOCIEDADE

A escalada do nazismo já estava dada e,com a sua consolidação e os efeitos da crise de 1929, possibilitou a implantação da colonização da sociedade. Esta gerou uma unificação das forças de direita sob a chefia dos nazistas no quadro da radicalização polarizada. A colonização da sociedade é a terceira alternativa frente às crises sociais do capitalismo industrial nos primeiros 30/40 anos do século XX. A primeira é o comunismo, a segunda é a social democracia e a terceira é o fascismo ou o nazismo, no caso da Alemanha.

A forma de colonização da sociedade se dá conforme os seguintes fatores:

Primeiro, a transferência para o interior da sociedade alemã do colonialismo, visando à reorganização interna e a preparação e expansão do capitalismo alemão, numa situação de crise determinada. O modelo de sociedade que vai se organizar na Alemanha, a partir de 33, vai ser o modelo de uma sociedade colonial, na qual os alemães serão o grupo dominante, o grupo superior. O agente dessa colonização será o bloco de poder sob o controle do capital monopolista e da indústria pesada; segundo, a reorganização da sociedade como uma colónia interna do capital monopolista, dirigida pelo Partido Nazista, que rapidamente passa a eliminar as suas tendências plebeias e as suas tendências anticapitalistas; terceiro, a identificação racial do nacionalismo alemão contra "nativos", ou seja, aqueles que são os colonizados, constituídos por operários, judeus, eslavos, minorias, socialistas e comunistas; quarto, a exploração desses nativos, em beneficio da metrópole, ou seja, da comunidade "racial" alemã, que é identificada com o capital monopolista que passa a ser associada com o capital produtivo em contraposição ao capital usurário (esse capital produtivo é individualizado nos proprietários capitalistas alemães e seus aliados do Partido Nazista alemão e suas estruturas paralelas, subordinadas a esse partido).

A criação de um poder colonial interno na sociedade alemã se dá não só pela divisão da identidade racial entre os nacionais alemães e os nativos que habitam .a Alemanha, mas também através da política de alienação. Tal política corresponde à expansão e incorporação das áreas onde existiam populações germânicas minoritárias a partir do momento que isso foi possível e, antes disso, através da alienação da economia, ou seja, a expropriação dos bens e do capital desses que nós chamamos de nativos em beneficio dos membros da comunidade ariana. É o processo de espoliação, de expropriação, dentro da própria Alemanha, dos judeus, dos bens que pertenciam aos sindicatos, ao Partido Social-democrata, ao Partido Comunista e a outras organizações políticas, que, segundo os nazistas, eram expressão do judaísmo internacional, e que são repassados para alemães puros.

Essa colonização corresponde ao movimento imperialista, por um lado, e, por outro lado, corresponde a uma ideologia racista, centrada no mito do heróidemiurgo, sendo que este é o homem alemão, racialmente puro, criador de cultura e não degenerado. A identificação do capital monopolista alemão com o capital produtivo é uma relação individualizadora deste capital pêlos alemães com seus proprietários alemães. Estes seriam os demiurgos junto com a hierarquia do Partido Nazista e com Hitler.

Tal processo de colonização interna da sociedade foi possibilitado por um complexo de fatores que hoje podemos identificar com clareza: (a) a revolução frustrada, que provocou uma retirada da classe operária, após a sua grande derrota, e a fragmentação do movimento operário alemão; (b) a ambiguidade e indefinição da República alemã, que não chegou a radicalizar em nenhum momento contra a antiga ordem e manteve uma série de elementos estruturais da antiga ordem; (c) pelo processo histórico do desenvolvimento do capitalismo alemão e por sua crise após a I Guerra Mundial; (d) pela imposição e pela possibilidade de reorganizar a produção conforme as necessidades da grande indústria e pela viabilidade de submissão da classe operária derrotada em 1919; (e) pela necessidade e pela possibilidade de organizar a sociedade conforme os novos moldes de industrialismo, ou seja, da indústria de massa, com o taylorismo do grande capital, do investimento em tecnologia e em métodos organizacionais da produção; (f) pela necessidade e possibilidade de subordinar e canalizar a erupção das massas na situação de crise e (g) pela situação de proletarização da pequena burguesia e da classe média alemã na década de 20 e 30, decorrentes da guerra imperialista, da modernização da estrutura produtiva dominada pelo capital monopolista e pela crise económica de 29.

A colonização fixou suas bases na pequena burguesia que havia sido educada no nacionalismo, no autoritarismo e no mito da superioridade racial, no germanismo dos alemães das regiões eslavas que pode ser entendido como mecanismo de defesa contra a emergência de uma classe operária não-alemã, menos habilidosa e mais barata que os trabalhadores alemães e como mecanismo de defesa contra a submissão dos alemães, enquanto minorias nas novas nações eslavas. Ela decorre da evidência decorrente da visão racista dos nazistas e dos conservadores alemães, de uma conspiração judaica, do comunismo e do capital financeiro usurário e internacional, judaico. Os nazistas gostavam muito de usar esse conjunto de expressões, que tomava a compreensível a ameaça, segundo esta visão de mundo dos hierarcas nazistas, da avalanche da burguesia da Europa oriental que imigrou para a Alemanha e deslocou a pequena burguesia alemã, derrotada pela crise e pela inflação.

E interessante notar um fato muito pouco claro: parte do capital nas mãos dos judeus na Alemanha e parte do capital nas mãos dos estrangeiros na Alema-nha era oriundo da Europa Oriental, que fugia da revolução no Leste e que, na Alemanha, comprava com moeda forte, os bens e os investimentos da pequena burguesia e da classe média alemã, na época da crise e da inflação. Essa avalanche da burguesia da Europa Oriental, também ela possibilita a emergência de elementos burgueses que investem justamente nos ramos novos da economia, nesses setores revolucionários da economia, que destróem a base da pequena burguesia. Ou seja, aqui há uma repetição, de certa forma, daquilo que aconteceu no fim do séc. XIX em Viena e que levou à emergência do anti-semitismo e do pangermanismo e que aconteceu na Alemanha também no final do séc. XIX/início do séc. XX, quando se constituiu o grande capitalismo monopolista. Nessa meia década entre 1924 e 1932, começam a crescer na Alemanha as grandes lojas de departamentos, as grandes redes de comercialização, a difusão de novos produtos, de novas formas de organização da distribuição da comercialização, que vão ser, em parte, financiados por elementos dessa burguesia que vem do leste, em associação com alguns elementos da burguesia alemã. Eles destróem a base da classe média e da pequena burguesia alemã, na medida que substituem o pequeno comércio, a produção artesanal, pela substituição dos produtos e pela competitividade. E, segundo a visão racista, isto evidencia uma conspiração judaica, a conspiração para destruir a sanidade da comunidade germânica ou da comunidade ariana.

Bom, a colonização da sociedade se expressa em vários níveis. No nível económico alguns aspectos que devem ser ressaltados. Por exemplo, a implementação permanente e global de medidas que caracterizam regiões dominadas e caracterizam privilégios de dominadores, tais como o congelamento e a diminuição do poder aquisitivo dos salários; apoio financeiro e fiscal ao capital monopolista e a capitalização das grandes empresas, pertencentes aos membros da comunidade ariana; a subordinação do pequeno capital às necessidades e à dinâmica do capital monopolista, aos latifundiários e o apoio à produção agrícola nos moldes que caracterizavam as "plantations" das regiões coloniais; a implantação do trabalho obrigatório a salários aviltados, (característica das economias coloniais) através das frentes do trabalho, da exploração do dever moral do trabalho e da coação física.

COLONIZAÇÃO E AUTODESTRUIÇÃO

Outro aspecto é o plano de rearmamento da Alemanha, desenvolvido pêlos nazistas. O plano retoma o militarismo alemão expansionista, característica das sociedades coloniais e da dominação colonial. A produção de armamento vai ficar, num primeiro momento, até a II Guerra Mundial, concentrado na comunidade ariana. A pureza racial vai ser o elemento-chave para pertencer às forças armadas, ganhar contratos de fornecimento para as forças armadas e assim por diante. O estabelecimento do trabalho escravo nos campos de concentração, chegando até a exploração económica dos cadáveres, e o mercantilismo económico, que se implanta através do marco bloqueado, que é uma espécie de moeda colonial (o marco bloqueado é aquele pelo qual os alemães pagavam os produtos que compravam). Esse marco não podia ser trocado por outra moeda, nada podia ser feito com ele, a não ser comprar na Alemanha produtos com um preço diferenciado.

Do ponto de vista social, a colonização da sociedade se caracteriza pela eliminação legal das classes sociais; pela criação de uma comunidade nacional ariana, que exclui os estrangeiros, os súditos e os arianos degenerados (aí entram aqueles operários e a classe média que resistem ao nazismo, e que serão objeto de exploração). Na medida em que essa comunidade nacional ariana se expande por novos territórios que constituem o seu "espaço vital", as populações não germânicas e não passíveis de germanização são divididas em súditos ou estrangeiros e, como tal, serão administrados. Deixa de existir a cidadania e isso é uma característica das sociedades coloniais.

Em nível político, vai acontecer a destruição dos órgãos representativos da sociedade civil com suas associações independentes e a militarização da sociedade; a destruição dos partidos políticos de origem classista; a destruição dos mecanismos de defesa operária e da sociedade, como sindicatos, cooperativas, imprensa, órgãos e associações de previdência, haverá a expropriação de seus bens e a distribuição destes aos membros do Partido e a alemães cooptados da pequena burguesia. Outra característica, é o nacionalismo chauvinista radical de novo tipo, centrado na raça e no direito ao "espaço vital", que proporciona a expropriação dos não-arianos, em beneficio da pequena burguesia alemã, seja ela urbana ou rural. A naturalização do direito da força, a concentração do poder absoluto nas mãos do governante, ou seja, do Partido Nazista e, em última instância, de Hitler, como o herói-demiurgo que criou o Partido e o III Reich; a implantação do direito do executivo de legislar; a distinção entre cidadãos, membros da comunidade racial e súditos, em relação aos direitos - os cidadãos ou os germânicos possuem uma série de direitos, dos quais estão excluídos os súditos ou os "nativos" dessa sociedade.

Comparando com as sociedades coloniais vemos que também os colonizadores internos possuem uma série de direitos políticos, sociais, económicos e de benefícios que extraem da pertença ao Estado metropolitano e que retiram dos súditos. Estes praticamente não possuem direitos, ou seja, aos nativos concede-se poucos direitos ou não se concede direito algum. Outro aspecto político é a instauração da elite de raça superior no poder político e na plenitude dos direitos em relação aos súditos, de meio-direito ou sem direitos e a exclusão das raças inferiores e dos degenerados de todos os direitos civis ou políticos, o que caracteriza as sociedades coloniais. Há, portanto, uma semelhança do nazismo com as demais sociedades coloniais, entre os colonizadores, os nativos e uma terceira categoria (dos excluídos ou daqueles que são objeto da exploração geral), uma hierarquia e uma gradação de direitos e de benefícios.

Ainda temos a implantação do princípio da liderança do Partido único e a eliminação dos órgãos da sociedade civil, subordinando todo o conjunto da sociedade aos direitos da raça pura, em beneficio do governo, de seus agentes e de seus financiadores e beneficiários. Há ai um paralelismo entre a forma com que se implanta a dominação colonial nas colónias externas, quando o princípio da liderança se estabelece através do governador colonial, que tem uma autoridade absoluta sobre o território, através do Partido único que é a administração colonial e a eliminação dos órgãos da sociedade nativa, como órgãos que representam essa sociedade. Aqui é a substituição dos órgãos da sociedade civil, que vão ser subordinados - quando não plenamente eliminados - aos aparelhos do Estado em beneficio dos membros da comunidade germânica, ou seja, daqueles que são considerados arianos de raça pura.

No nível ideológico, a colonização da sociedade, ela se expressa pela utilização e exploração legitimadora dos mitos da raça superior e da raça inferior, mito também muito explorado e utilizado nas sociedades coloniais. No mito da existência de uma elite dominante por direito próprio e pelo darwinismo social, também explorado pêlos colonizadores, utilizado pêlos colonizadores nas regiões dominadas, no mito da nacionalidade racial, no mito do fardo do homem branco, que tem o direito e o dever de dominar, organizar e purificar, no caso aqui, o fardo do homem branco é o fardo da comunidade racial superiora, ou seja, da comunidade racial ariana, criadora de cultura, que tem o direito e o dever de explorar, dominar e organizar o mundo, em seu beneficio.

Os hierarcas do Partido, constituem a elite do regime e a elite da comunidade. Juntamente com a alta burguesia, são a expressão máxima da superioridade alemã. No momento em que há ruptura entre os interesses da grande burguesia e os interesses do Partido (numa Alemanha em guerra), as necessidades de guerra levam a uma autonomização relativa do Partido e do Estado em relação à grande burguesia. Daí os S S chegarem a implantar no Estado, uma economia particular, uma economia própria dentro da economia alemã. Mas se, por um lado, aconte- ce isso, por outro lado, não há uma ruptura completa entre esses dois segmentos, na medida que a própria S S baseia a sua economia na expropriação da economia das regiões dominadas em beneficio dos ários e na reorganização da produção na qual se beneficia o grande capital. Os campos de extermínio, que fazem parte da economia SS, são também campos de trabalho onde o grande capital, através da exploração do trabalho escravo, tira grandes benefícios. A própria contradição que pode emergir entre o grande capital e os nazistas se dá mais no momento em que a guerra está definida e no momento em que a SS busca salvar-se. Aí, enquanto núcleo ideológico, vamos chamar assim, o núcleo duro do nazismo, quer (ele só acredita na lei do darwinismo social) a vitória completa ou a possibilidade de aniquilação total.

Com os atentados do 20 de julho, começa a haver uma certa divisão, entre aqueles ideológicos e os "económicos". Para os ideológicos do nazismo, não pode haver um meio-termo, não tem como suportar-se uma derrota, que significa eliminação, enquanto a vitória significa a concretização do darwinismo social, em que baseia o pensamento deles. A aniquilação total é considerada pêlos nazistas, isso fica muito claro, no discurso final do Hitler e no seu testamento político bem como nos últimos discursos de Goebbeis, resistir até o fim e provocar a destruição total, quer dizer, imolar-se para impedir que os inimigos e os adversários se beneficiem da derrota deles. Na derrota, auto-imolação final, através de uma resistência suicida, seria também uma vitória, porque seriam utilizados e não entregariam sua comunidade racial. Além disso, sua estrutura económica, os meios de produção, seriam destruídos também, então, não haveria benefícios para os vencedores.

* Conferência proferida em 9 de agosto de 2000.


Editado electrónicamente por el Equipo Nizkor- Derechos Human Rights el 21feb02
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