Neonazismo
Negacionismo: Génese e desenvolvimento do extermínio conceitual

Luis Milman*


Filósofo, Ph.D em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é também jornalista. Foi repórter e colaborador de diversos jornais e revistas brasileiras e colunista da Revista Shalom. É professor de Filosofia da Linguagem e Semiótica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É autor do livro "A natureza dos símbolos: ensaios semântico-filosóficos" e de ensaios sobre o tema do racismo e direitos humanos.


I. INTRODUÇÃO: ATROCIDADE E CINISMO

Os debates sobre o negacionismo têm mobilizado, desde a década de 80, intelectuais e ativistas dos direitos humanos de maneira crescente. Em muitos aspectos, as discussões que têm sido feitas contribuem para elucidar a funcionalidade de fantasias racistas arcaicas e de mitos conspiratórios ainda ativos na mentalidade contemporânea. São, nesse sentido, discussões reveladoras do irracionalismo de muitas crenças cotidianas, além de comprovarem que a imaginação antisemita ainda pode ser colocada a serviço de um projeto político. Discutir o negacionismo é, assim, discutir o anti-semitismo, a deformação ideológica e política mais persistente da cultura ocidental. Por essa razão, com respeito à questão objetiva que motiva esses debates, a saber, a negação do Holocausto, penso que é importante fazer algumas constatações preliminares:

Primeiro: o negacionismo, numa perspectiva estritamente historiográfica, não é uma interpretação alternativa, nem reacionária, nem mesmo nazistófila, do hitíerismo. Ele é uma uma construção ideológica de aparência histórica e, nessa condição, não suscita problemas ao nível da compreensão do Holocausto e das suas consequências. O desafio que os negacionistas nos apresentam é de outra natureza: na medida em que constróem uma versão fictícia da História e que essa versão produz efeitos políticos, os negacionistas obrigam-nos não somente a refutá-los, mas a fazermos uma reflexão sobre a relevância do papel da História e da memória para a educação humanista.

Estas não são questões académicas, nem devem interessar a especialistas apenas. É inequívoco, pelo menos para quem dedica alguma atenção ao assunto, que as pessoas que negam ter havido o extermínio planificado de judeus (sobretudo, mas não exclusivamente) (1), desejam, através de contorcionismos retóricos, descriminalizar o regime nazista e, com isso, reabilitar o nazifascismo como opção política. É essa tentativa, a saber, a de aliviar o nazismo de seu fardo criminoso, que deve ser analisada.

Segundo: é muito comum que, na análise do problema da negação do Holocausto, nos deparemos com falsas questões. No plano da falsidade aberta, os negacionistas afirmam, por exemplo, que há dois enfoques sobre o que se passou com os judeus europeus durante a II Guerra e que, quando debatemos o tema, inevitavelmente assumimos um compromisso com um deles. Um dos enfoques seria, segundo a terminologia que eles usam, "não-exterminacionista". Assim haveria um confronto entre interpretações distintas, a ser decidido cientificamente.

Esta é uma questão falsa que se fundamenta num truque de argumentação. Não há enfoques antagónicos ao nível da existência dos fatos sobre o extermínio de milhões de judeus. Tais fatos são irrefutáveis, assim como são irrefutáveis os fatos sobre como tal extermínio foi realizado e quem foram os responsáveis por eles. Há suficiente documentação e evidência, em vários níveis, sobre o assunto. Isto não quer dizer, nem remotamente, que as pesquisas nesse campo estejam encerradas. Ao contrário, há muito ainda o que descobrir, esclarecer e compreender sobre o Holocausto e, mais amplamente, sobre o nazifascismo dos anos 30 e 40. Mas, não há disputa sobre a existência do fato do extermínio, assim como não há disputa fatual sobre o extermínio dos arménios ou sobre o extermínio de milhões de africanos no Congo Belga, no início do século, ou ainda sobre a carnificina do Cmer Vermelho no Camboja. (2)

Terceiro: como historiografia, o negacionismo é uma deformação. Como ideologia, no entanto, ele é uma expressão particularmente assustadora da naturalidade com que convivemos com o perspectivismo relativista, o verbalismo vazio e a demagogia pseudocientífica. Os negadores praticam, por fanatismo ou por oportunismo, o embuste e o cinismo. Alguns, por exemplo, admitem que judeus foram assasinados pêlos alemães, mas dizem que estes assassinatos teriam sido crimes de guerra, tão condenáveis quanto os crimes cometidos pêlos aliados contra os alemães, tão brutais como os cometidos pêlos franceses na Argélia durante os anos 50 e 60, ou como as crueldades dos americanos no Vietnã, ou as de Stalin e Mão contra seu próprio povo. Hiroshima e Nagasaqui não foram igualmente insanos? Não eram os judeus inimigos de Hitler?

Essa alegação é uma forma de justificar a indiferença moral com respeito a atrocidades cometidas contra judeus pêlos alemães durante a II Guerra. Não se trata, aqui, da banalizar o mal, mas de explorar uma forma de apreensão, esta sim banal, do mal. A banalização do mal, analisada por Hannah Arendt com base na personalidade burocrática de Eichmann e na configuração da política de extermínio nazista, diz respeito às caraterísticas históricas da execução do crime de genocídio, à sua especificidade como modo administrativo de assassinato em massa. Já a exploração da apreensão banalizada deste modo de assassinato é um fenómeno que vem se configurando em nível ideológico, favorecido pela distância temporal do evento do extermínio e da II Guerra, bem como pelo reaparecimento de plataformas obscurantistas no cenário político contemporâneo.

A tentativa de banalizar a apreensão do Holocausto com recursos relativistas não é inédita como retórica defensiva nazifacista. Nós a encontramos na lógica empregada por Robert Servetius, o advogado de Adolf Eichmann em Jerusalém; ou por Paul Vergès, defensor de Klaus Barbie em Lyon, que a retomou no recente julgamento de Roger Garaudy. Não há remorso, não há admissibilidade de culpa, reconhecimento ou vergonha pelo sofrimento humano causado. Há raciona- lizações sobre as circunstâncias da guerra, invocações de co-responsabilidades históricas, referência aos crimes dos vencedores, à condição de derrotados dos criminosos. Tudo não se trata, afinal, de uma questão de perspectiva? Não somos, afinal, todos culpados e, assim, todos inocentes? Na defesa de Eichmann, Servetius chegou a invocar o determinismo do "espírito da história, que a faz correr livre da influência dos homens." Os atos cometidos por Eichmann eram aqueles pêlos quais, para Servetius, "somos condecorados se vencemos e condenados à prisão se perdemos". (3) Bauman nos chama a atenção para o que esse perspectivismo revela:

A mensagem óbvia nessa afirmação - certamente uma das mais pungentes do século, que não é absolutamente pobre de ideias notáveis - é trivial: o poder diz o que é certo. Mas também há outra mensagem, não tão evidente, embora menos cínica e muito mais alarmante: Eichmann não fez nada essencialmente diferente das coisas que fizeram os vencedores. As ações não têm valor moral intrínseco, nem são imanentemente morais. A avaliação moral é algo externo à ação em si e se decide por critérios outros que não aqueles que guiam e moldam a própria ação. (Bauman, 1998:38)

E uma trivialidade que os nazistas não inventaram a perversidade, que não inventaram o anti-semitismo, que suas vítimas não foram apenas os judeus, que havia uma guerra e que muitos horrores são as consequências imediatas de todas as guerras. Mas, é também verdade que o Holocausto foi um genocídio deliberado e planificado, cujo resultado foi a eliminação da metade da população judaica europeia. Também é verdade que a doutrina e a prática da eliminação física dos judeus, priorizada e executada em escala industrial pêlos nazistas, é, para os padrões de uma moral não contaminada pelo cinismo, uma aberração sem precedentes na História. Ela resultou da combinação de uma ideia política bizarra - a reforma do mundo pela engenharia racial, que era a convicção de um grupo racista que conseguiu chegar ao poder na Alemanha - com uma conjunção peculiar de características do totalitarismo nazista, tais como a formação de uma cadeia de comando disciplinada e disposta a executar as ordens de um líder "acima de todas as outras devoções e compromissos" (Bauman, 1998: 41), a indiferença de pessoas comuns com relação ao destino dos judeus, o emprego de tecnologia e de métodos de planejamento modernos e a criação de uma máquina administrativa dedicada ao assassinato coletivo.

Marcados tais pontos preliminares, minha intenção, com este trabalho, é abordar o negacionismo a partir de duas perspectivas complementares: a primeira é histórico-política e esclarece sobre as etapas mais significativas da trajetória deste movimento; a segunda é conceituai e analisa a forma como elementos doutrinários racistas, anti-judaicos e anti-sionistas são combinados nas teses dos seus principais protagonistas. A ideia é extrair, da junção destes enfoques, um entendimento adequado dos pseudo-argumentos dos revisionistas da negação e do seu papel na ofensiva política da ultradireita europeia, que voltou a ocupar terreno em disputas eleitorais, fazendo uso da heterofobia e do anti-semitismo.

II. DOS PALEONAZISTAS A RASSINIER: A PRIMEIRA FASE DO NEGACIONISMO

Em linhas gerais, os negacionistas apresentam-se como pesquisadores dedicados a questionar a "história oficial". Quanto às teses e métodos, eles convergem quase que totalmente. O padrão e a uniformidade, no entanto, não se verificam quando analisamos seus interesses ideológicos primários. Nessa perspectiva, percebe-se uma estranha coabitação de matrizes políticas aparentemente incompatíveis. Por essa razão, uma incursão pela história do negacionismo trará esclarecimentos sobre as origens e o desenvolvimento de suas distintas motivações.

Dadas as suas características de dissimulação histórica e as suas motivações políticas, o negacionismo deve ser analisado em pelo menos três planos distintos e complementares:

- em primeiríssimo plano, como expressão - a mais recente - do ideário político anti-semita cultivado pela direita radical europeia desde o final do século passado;

- em segundo plano, como instrumento, não o único obviamente, de uma intensa ofensiva ideológica que visa a habilitar o fascismo como alternativa política para a solução de problemas estruturais das democracias consideradas estáveis na Europa do Pós-Guerra

- em terceiro plano, como forma de denunciar um alegado artificialismo do Estado de Israel, que expressa uma compreensão inteiramente anti-sionista do conflito árabe israelense e, sobretudo, palestino-israelense. Desse modo, o negacionismo passa a servir de justificativa para a rejeição de qualquer forma de compromisso com a existência política de Israel, rejeição a qual apegam-se setores árabes e muçulmanos ideologicamente intransigentes.

Para estabelecer a correlação entre esses níveis, é imprescindível fazer referência a alguns dos nomes destacados do movimento, como Paul Rassinier e Robert Faurisson, personagens em tomo dos quais a escola negacionista construiu suas bases atuais. Rassinier é o autor do primeiro livro negacionista, publicado em 1964, recuperado nos anos 70 e difundido, desde então, como a parte central do cânone do movimento. Já Faurisson é quem toma a doutrina conhecida do grande público europeu, a partir do final da década de 70.

Os contornos do negacionismo começaram a ser definidos no início da década de 50. É importante destacar esse fato, porque ele nos chama a atenção para a fase na qual a ideia da negação estava sendo concebida. Assim, não apenas tor- na-se mais fácil compreender a natureza das teses que o configuram, como também revela-se com mais clareza o caráter dinâmico da sua ideologia de fundo, que é capaz de ajustar-se a contextos políticos distintos.

Paul Rassinier, professor de história e geografia de um liceu em Belfort (Norte da França), nos anos 20, é um dos personagens-chave da história negacionista. Ele combina os elementos aparentemente antitéticos do negacionismo, principalmente uma espécie errática e selvagem de esquerdismo e o nazifascismo de Maurice Bardèche, o mais importante ideólogo da extrema-direita francesa no Pós-Guerra e o primeiro a publicar suas ideias.

Antes de tornar-se o teórico patriarcal do negacionismo, Rassinier teve uma trajetória de militante pacifista radical, que o levou do Partido Comunista Francês, entre 1924 e 1932 à Seção Francesa da Internacional Socialista a (SFIO, atual PS), entre 1934 e 1951. Antes e durante a II Guerra, participou da tendência ultrapacifista do PS, que se opunha à linha dominante de Leon Blurn, a quem os pacifistas acusavam de belicista. (4) Entre 1942 e março de 1943, Rassinier foi redator do jornal Lê Rouge et lê Bleu, que defendia uma resistência não armada à Ocupação. Engajou-se, em 1943 no grupo da resistência Libertação Norte, mas continuou recusando-se a pegar em armas. Até abril de 1944, atuou como redator do jornal clandestino La IV.é Republique. Foi preso, naquele mês, pela GESTAPO e enviado primeiramente para o campo de Buchenwaid e, em seguida, para Dora-Nordhaussen, entre Kassel e Leipzig.

Após a Guerra, em junho de 1946, foi eleito suplente na Constituinte da IV República. Chegou a assumir o mandato em setembro, mas não reelegeu-se nas eleições legislativas realizadas no final daquele ano. Em 1948, publicou seu primeiro livro, Passage de Ia ligue, em que descreve os sofrimentos dos internos no campo de concentração de Dora, administrado internamente por kappos soviéticos. Rassinier foi expulso da SFIO em 1951, após publicar seu segundo livro, no qual acrescentava ao pacifismo e ao ódio ao comunismo, a tese de que a Guerra havia sido provocada por um complô judeu internacional (Lê Mensonge de Ulisses, Rassinier, 1950). (5)

A ideia do complô foi consolidada sob a influência de Maurice Bardèche, um dos principais líderes do nazifascismo do Pós-Guerra, de quem Rassinier aproximou-se em 1949. Professor de literatura e crítico literário, cunhado de Robert Brasilach (6) ( o editorialista do Je suis partout - o principal jornal colaboracionista de Vichy), vichista integral e germanófilo, Bardèche, além de ter sido um dos precursores das teses negacionistas, introduziu Rassinier no círculo das lideranças nazistas mais ativas no Pós-Guerra. (7)

Bardèche foi um dos mais destacados articuladores dos movimentos que reagruparam, política e ideologicamente, militantes e teóricos da extrema-direita depois do colapso do Eixo. Ex-funcionários e militares do nacional-socialismo alemão, juntamente com nostálgicos do fascismo italiano e do vichismo francês, criaram, em 1951, em Malmoe, Suécia, o Movimento Social Europeu (MSE), que alguns autores chamaram de Internacional Negra (Eisenberg, 1967; Kirfel e Oswait, 1989) (8). Os principais dirigentes do MSE eram, além de Bardèche, o também francês René Binet, o sueco Per Engdahl, o alemão Kari Otto Priester, os italianos Giuseppe Marasanich e Ernesto Massi, o suíço Gaston-Armand Amaudruz e o inglês Oswaid Mosley. Seus principais órgãos de divulgação eram as revistas "Defénse de l'Ocident" (França) e a "Nation Europa" (Alemanha).

Essa extremíssima direita residual dedicou-se a ajustar o pensamento fascista e nazista da Nova Ordem dos anos 20 e 30, às condições sóciopolíticas dos anos do início da Guerra Fria. Seus três segmentos tradicionais defendiam posições em grande parte comuns, mas mantinham diferenças históricas. Concordavam na defesa de uma ordem natural da civilização europeia, oposta às ordens democrático-liberal e bolchevista, resultantes da ruptura iluminista e da Revolução Francesa; combatiam prioritariamente o comunismo e denunciavam a democracia das oligarquias capitalistas, o "demoliberalismo" que, segundo eles, levava à corrupção e à revolução bolchevique (9); ao mesmo tempo, faziam a apologia dos regimes derrotados do Eixo, atacados e destruídos justamente por suas virtudes distintivas, como a reafirmação dos vínculos vitais entre a Nação, o Povo e o Estado e a criação de sistemas nacionais e corporativos originais; defendiam ainda as ditaduras conservadoras de Salazar e Franco, que haviam sobrevivido à debacle fascista e eram apresentadas, sobretudo pêlos segmentos vichista e fascista, como modelos tradicionais e cristãos de vida.

Já uma posição era característica do segmento nacional-socialista, representado por Bardèche, Johann Von Leers, Kari Priester, Hans Uirich Rudel, Kari Von Ove e Eberrhard Fristch, personagens sobre os quais farei alguns comentários a seguir: o componente era o anti-semitismo virulento, que identificava as oligarquias capitalistas ao judaísmo internacional, e este ao sionismo.

Depois da sua expulsão da SFIO, Rassinier aproximou-se dos anarquistas franceses e passou a corresponder-se com Johann von Leers, homem de confian- ça de Goebbeis no Minstério da Propaganda do III Reich (10). Von Leers, que havia sido condenado a 18 meses de prisão em Nuremberg, emigrou, depois da pena, para a Argentina, onde assumiu a direção da revista Der Weg (O Sendero), braço da linha nacional-socialista da Internacional Negra. (11). Em 1953, com Fritsch, ele fundou, na Argentina, o Partido dei Renascimiento Nacional, ativo até 1955, quando um golpe militar derrubou Perón. Após a queda do caudilho argentino, Von Leers transferiu-se para o Egito, reunindo-se a outros paleonazistas abrigados no Cairo, como Daniel Perret-Gentil, Georges Oitramare, Per Anderson e Louis Heiden, o tradudor de Mein Kampf para o árabe. No Egito, converteu-se ao islamismo e, com o nome de Omar Amin von Leers, assumiu o comando da Direção Nacional de Informação da República Árabe Unida, o ministério de propaganda da RAU de Nasser e Assad (12). Sua atuação constante como coordenador das políticas de propaganda da RAU acrescentou, ao pan-arabismo e ao enfrentamento com Israel, o componente anti-semita feérico do ideado nazista, que se tomou, assim e definitivamente, um ponto importante da doutrina de rejeição total de Israel no mundo árabe e, a partir de 1980 especialmente, no Ira.

O negacionismo passa, a partir dos anos 70, a ser o elemento central de uma estratégia que se destina a criar condições para a recomposição ideológica de grupos políticos nazistas. Os fundamentos desta recomposição encontram-se nos ensaios de Amaudruz, Bardèche, Fristch e Von Leers, produzidos no início dos anos 50 e difundidos pelas revistas Défense de l'Ocident, Nation Europa e Der Weg (Argentina). Inicialmente centrados na acusação de parcialidade e revanchismo dos julgamentos de Nuremberg, essa ensaística deriva para a eliminação dos crimes nazistas e para a inversão que transformava os criminosos da II Guerra em vítimas. O artigo que pela primeira vez apresenta a tese da inexistência de câmaras de gás foi escrito por Von Leers e publicado no Der Weg, em 1954 e logo ganhou uma tradução francesa Défense de l'Occident, de Maurice Bardèche.

Rassinier, depois de estreitar as relações com tais círculos, passou a publicar, a partir de 1961, livros abertamente antijudeus, pelas editoras anti-semitas francesas, em especial pela Sept Couleurs, também de Bardèche. Neles, apresentava, segundo a descrição de Vidal-Naquet, "um florilégio das formas mais estúpidas e deformadas de anti-semitismo" (Vidal Naquet, 1990:58) (13). Tais textos ainda expressavam o ressentimento e as inversões características do paleonazismo dos Pós-Guerra e antecederam o livro que, pela primeira vez, teve a pretensão de sustentar tecnicamente que as câmaras não existiram. Refiro-me ao Lê Drame dês Juifs Européens (O Drama dos Judeus Europeus), de 1964, ao qual se seguiram UOperátion 'Vicaire' (1965) e Lês Responsables de Ia seconde guerre mondiale (1967).

III. DE FAURISSON E DA VELHA TOUPEIRA: O NEGACIONISMO HÍBRIDO

Faurisson entra em cena 10 anos depois da morte de Rassinier e, no final dos anos 70, toma-se o nome mais expressivo dos negacionistas, condição que obteve, em grande medida, devido a uma circunstância histórico-política especificamente francesa, que considero importante circunscrever, ainda que com alguma brevidade.

Ao comentar a entrevista de Louis Darquier de Pellepoix, um alto funcionário do Governo de Vichy (14) ao jornal UExpress, em outubro de 1978, esse anglofrancês, nascido em 1929, então professor de literatura da Universidade de Lyon, apresentava suas pretensões da seguinte forma: "Espero que algumas destas declarações... levem finalmente o público a descobrir que os alegados massacres nas câmaras de gás, o alegado genocídio, compreendem uma só mentira, desafortunadamente endossada até agora pela história oficial (a dos vencedores) e pelo poder colossal dos meios de comunicação (15).

Na entrevista, Darquier, vichista e anti-semita convicto, afirmava que o genocídio era "uma invenção judia pura e simples" e que "a única coisa exterminada em Auschwitz foram piolhos".

Em dezembro de 1978, logo depois da carta na qual saudara a entrevista de Darquier, Faurisson publicou, no Lê Monde, o artigo "O Problema das Câmaras de Gás" ou "o Boato de Auschwitz". Na época, iniciava-se na França uma discussão pública sobre o colaboracionismo do período de ocupação nazista, deflagrada por alguns fatos que merecem lembrança: em 1978, as cinzas do Marechal Phillip Petain, herói da I Guerra e chefe do Governo de Vichy, foram transferidas para o campo de honra de Douaumont (local de um combate histórico da I Guerra); no mesmo ano, a série americana "Holocausto" foi exibida em rede de TV, depois de uma polémica sobre a responsabilidade das autoridades de Vichy na deportação de judeus franceses e, em 1979, foram iniciados os processos (por crime contra a Humanidade) contra Jean Leguay (responsável pela deportação de judeus do Governo de Vichy ) e de seus subordinados Maurice Papon e Paul Touvier.

As discussões tornaram-se mais agudas com a chegada de Mitterand e dos socialistas ao poder, em 1981; e, em fevereiro de 1983, com a extradição de Klaus Barbie da Bolívia, o debate tomou conta da opinião pública francesa, na medida em que o país dava início ao julgamento que a colocaria de uma vez por todas diante dos fantasmas do passado vichista. O Oberssturmfüher (primeiro tenente) das SS, Chefe da Gestapo em Lyon e assassino de Jean Moulin (braço direito de Charles de Gaulle, que uniu a resistência francesa), retornava como prisioneiro à cidade para a qual fora designado em 1942, com a ordem de "arrasar a resistência francesa e de livrar-se definitivamente dos judeus".

Este era o ambiente que viu surgir uma querela sobre o negacionismo. A extrema direita anti-semita, nostálgica do vichismo, percebeu, na atenção que a imprensa dedicava a Faurisson, um estímulo para resistir ao consenso envergonhado da opinião pública francesa em relação ao fascismo de Vichy e ao colaboracionismo. As ligações de Faurisson com a ultradireita tradicional e xenófoba são indisfarçáveis. No entanto, a origem da campanha que pretendeu torná-lo um intelectual respeitável surpreendeu a muitos franceses. Não foram apenas os paleofascistas vichistas que partiram para a sua defesa aberta, mas alguns grupos de uma "extremíssima esquerda", a exemplo da La Guerre Sociale que, em 1979, chegou a distribuir um folheto com a foto de Faurisson, com o título "Quem é o Judeu". (16) A ideia era personificar, em Faurisson, o estereótipo clássico do difamado, devido a alegadas pressões que o professor de Lyon passara a sofrer depois da publicação de seu artigo no Le Monde.

Em abril de 1980, Serge Thion, sociólogo, pacifista, antibolchevista, pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa da França, publica o livro Verdade Histórica ou verdade política? O dossier do affair Faurisson. A Questão das Câmaras de Gás. Thion admitia que Faurisson era "um homem de direita, ou mais precisamente, alguém com o perfil de um anarquista de extrema direita". Em seguida, no entanto, atenuava a caracterização: "...devemos lembrar que até o começo deste caso, muitos de seus alunos e colegas o tomavam como alguém da esquerda. Por qualquer padrão, ele é um homem só( Thion, 1980:2)

Explica-se a atenuante pela acolhida que Faurisson obteve junto a setores da esquerda anárquica, radicalmente anti-sionistas, que terminaram rompendo com o trotskismo francês, nos anos 70. A disputa criada na França em torno do negacionismo tem, portanto, a particularidade de ter sido pautada pela recepção positiva de Rassinier e Faurisson por um esquerdismo sectário que passava por um processo de quase extinção no final dos anos 70, mas que encontrou, na negação do genocídio, a base do que pode ser chamado seu renascimento ideológico. Um fato, à primeira vista, incomum, na medida em que quebrou a monotonia da identificação do negacionismo como discurso exclusivo de extrema direita e, por consequência, veio a causar uma certa confusão acerca da natureza desse movimento.

A esquerda negacionista tem seu centro em Paris, mais precisamente na Editora e Livraria La Vieille Taupe (Velha Toupeira, Rua de Fosses, bairro Saint Jacques) e possui ramificações na Itália e Inglaterra, onde alguns grupos que se extraviaram da esquerda radical, passaram a defender posições nacionalcomunistas e anti-sionistas (17). Inicialmente uma livraria especializada em literatura revolucionária, A Velha Toupeira foi fundada em 1965, (18) por Pierre Guiliaume, ex-ativista trotskista, integrante do grupo dissidentes do Partido Comunista Internacionalista Francês, que criou a revista Socialisme ou Barbarie-SOB (1949-65). Em 1963, Guiliaume acompanhou a ala proletária da SOB numa nova dissidência e fundou o Pouvoir ouvrier, do qual afastou-se em 1967. Neste ano, ele transformou a Velha Toupeira em grupo revolucionário independente, do qual aproximaram-se outras seitas da ultra-esquerda francesa, como a La Jeune Taupe, La Guerre Sociale, as facções Grupo Comuna de Kronstadt e Os Amigos de Potiasch.

O rompimento definitivo com a esquerda que a Velha Toupeira considerava "fantoche e conformista" ocorreu em 1978, quando o grupo, à época reduzido apenas a uma livraria falida e a uma seita revolucionária inexpressiva, ressurgiu na condição de esteio do negacionismo, protetora de Faurisson e reabilitadora de Paul Rassinier. Para Guiliaume e Thion (19), a denúncia da lenda das câmaras de gás estava destinada a realizar a última etapa de uma ruptura total com o consenso antifascista, do qual a esquerda europeia historicamente participara. Em linhas gerais, a ruptura levava a consequências extremas a critica mais genérica e frequente dos intelectuais da SOB, que analisavam o fascismo como subproduto do capitalismo. Ao nível da prática política, essa crítica se expressava na denúncia da oposição pontual ao fascismo, vista assim mais como manobra dos governos imperialistas destinada a criar uma falsa oposição entre regimes capitalistas liberais e autoritários.

A Velha Toupeira cruza a linha da denúncia do antifascismo quando realiza a eliminação conceituai do genocídio. A existência das câmaras de gás passa a ser descrita como um engodo fabricado pelas oligarquias capitalistas que apoiam económica e ideologicamente o Estado de Israel. A historiadora Nadine Fresco observa que a tese do extermínio como impostura ofereceu aos integrantes do grupo Velha Toupeira a "audácia conceituai que os habilita a abandonar a denúncia do antifascismo como álibi do capitalismo e a devotar-se a um trabalho mais radical de demolição das bases mesmas deste antifascismo". (20) Anti-soviética, antiburguesa, por fim antitrotskista, anti-sionista e intérprete autêntica da história revolucionária, a seita passaria a modelar, na vida e nas ideias de Paul Rassinier e Robert Faurisson, a sua guerra ideológica contra o capitalismo e o sionismo. Sobre a nova bandeira, é exemplar a conclusão de Vidal-Naquet:

A Vieille Taupe adere às teorias de Paul Rassinier, de onde tirará as deduções mais radicais. Para ela, não há qualquer especificidade hitíerista nas galerias das tiranias modernas: os campos de concentração só poderiam ser campos de exploração no sentido económico do termo, e consequentemente, os campos de extermínio não podem ter existido, pois, na boa lógica, não deviam ter existido (VidalNaquet, 1990:181).

Não podemos perder de vista, entretanto, que o lugar natural da negação do Holocausto é a extrema-direita. Assim, não causa surpresa o fato de que o imaginário revolucionário da Velha Toupeira viesse a ser inteiramente incorporado pelas doutrinas de vichistas pró-nazismo defendidas por Bardèche, inter alia. Pode-se mesmo encontrar, nessa incorporação pela extrema direita de elementos de um alter-marxismo - uma ideologia esquerdista desfigurada e fugidia- certa semelhança com o fenómeno ocorrido no final dos anos 30, quando um grande número de ultrapacifistas da SFIO que se colocavam contra o governo de Leon Blum, aderiram às teses vichistas e apoiaram o gabinete de Petain.

É também importante acentuar que, desde a primeira metade dos anos 70, tais ideias passaram a ser defendidas por nazistas europeus e norte-americanos, que publicaram vários textos destinados a provar que o extermínio de judeus não passava de um mito. Na sua quase totalidade, eram textos grosseiros e repetiam as fórmulas do autor do Drama, expostas com a paixão anti-semita característica. (21) O inglês Richard Harwood (Richard Verral) nos dá um bom exemplo da orientação dessa hipótese:

(...) Assim, a acusação dos Seis Milhões não é somente usada para minar o princípio da nacionalidade e o orgulho nacional, mas ameaça a sobrevivência da própria raça. Ela é lançada sobre as massas, assim como o foram o fogo do inferno e a danação na Idade Média. Muitos países do mundo anglo-saxão, especialmente a Inglaterra e os Estados Unidos, enfrentam, hoje, o maior perigo da sua história, a presença de raças estrangeiras em seu meio. A menos que algo seja feito para cessar a imigração e a assimilação de africanos e asiáticos em nosso país, enfrentaremos, num futuro próximo, não apenas a ameaça de um conflito racial sangrento, mas a alteração e a destruição biológica do povo, tal qual existiu desde a chegada dos saxões. Em resumo, estamos ameaçados pela perda irrecuperável da nossa cultura europeia e da nossa herança racial. Mas o que acontece se um homem atreve-se a falar sobre o problema racial, sobre suas implicações biológicas e políticas? Ele é estigmatizado como a mais odiosa das criaturas, um "racista". E o que é o "racismo"? Claro, a marca distintiva do nazista! Eles (assim é dito a todos, de qualquer modo) assassinaram Seis Milhões por causa do racismo, portanto [o nazismo] deve ser o próprio mal. Quando Enoch Powell chamou a atenção para os perigos da imigração de cor para a Inglaterra, em um de seus primeiros discursos, um proeminente socialista levantou o espectro de Dachau e Auschwitz para silenciar sua ousadia (Harwood, 1979:01)

Quando Faurisson aparece, esse tipo de literatura circulava pela Europa de modo restrito, sem chamar a atenção da grande imprensa. A situação mudaria depois da polémica criada em torno do seu nome, que também marca o início de uma fase na qual a extrema-direita francesa voltaria a apresentar credenciais políticas, com a Frente Nacional de Lê Pen. O destaque obtido por Faurisson não pode ser atribuído, como vimos, às suas teses ou à originalidade na forma com que ele as apresentava. As sucessivas polémicas suscitadas pelas ideias deste "homem só" ocorreram quando o cânone negacionista já havia sido construído pêlos seus predecessores e consolidado por Paul Rassinier.

No entanto, coube a esse admirador e discípulo de Maurice Bardèche a tarefa de continuar e amplificar a obra de Rassinier, a quem ele conhecera em 1967. Faurisson iniciou suas pesquisas sobre o Holocausto em 1972. A partir de 1974, passou a frequentar os arquivos do Centro de Documentação Judaica de Paris. Foi, no entanto, após a publicação de "O Boato de Auschwitz", em 1978, que a confusão em torno do seu nome chegou a ponto de fazer com que Noam Chomsky, amigo de Thion, aceitasse escrever o prefácio do livro lançado por ele 1980, chamado Mémoire en defénse: Contre ceux qui me accusent defasifier l'histoire. Chomsky, além disso, assinaria, no mesmo ano, uma petição "em favor do direito de Faurisson de continuar suas pesquisas sem impedimento." (22)

O envolvimento de Chomsky com os negadores do Holocausto merece uma explicação. O conhecido linguista americano não é revisionista e jamais sustentou as teses de Faurisson. Sua intervenção no affair deveu-se mais à sua agenda "libertário-anarco-sindicalista" (23) e às suas relações pessoais com Thion. O resultado desse envolvimento foi uma manifestação de solidariedade a Faurisson por razões de consciência, mesmo que tal apoio tenha significado, na prática, a utilização do nome de Chomsky para a promoção de um mistificador de ultradireita travesddo de pesquisador. (24)

Dizer que Faurisson é de direita, como o fez Thion, é dizer pouco. O sociólogo da Velha Toupeira sabia que não poderia encobrir tal fato, diante de evidências que já eram flagrantes na época. Em junho de 1978, alguns meses antes de ser publicado pelo Lê Monde, "O Boato de Auschwitz" aparecera na revista A Defesa do Ocidente, de Bardèche. No mesmo mês, o jornal da facção neonazista alemã Grupo Deutscher Arbeitskreis (Trabalho Alemão) publicou um outro artigo de Faurisson ("Não houve câmaras de gás"), precedido da seguinte informação sobre o autor:

Um eminente professor universitário que, como muitos revisionistas, devotam-se com neutralidade à verdade histórica, enquanto alemães sionistas e judeus, em pânico diante da marcha inexorável da verdade, tentam em vão perpetuar os mitos abomináveis dos crimes imputados aos nazistas (Deutscher Arbeitskreis, 1978).

Em 1979, Faurisson foi saudado por neonazistas, desta vez na condição de personalidade do I Congresso Mundial Revisionista, realizado pelo Instituí For Historical Review, em Torraine, Califórnia e promovido pelo Liberty Lobby, um das mais antigas associações xenófobo-fascistas dos Estados Unidos. (25)

Aclamado pêlos líderes da extrema-direita segregacionista dos Estados Unidos, que passaram a adotar sem reservas a negação do Holocausto como eixo de sua estratégia de propaganda, Faurisson marcou sua presença em vários eventos patrocinados por racistas e neonazistas norte-americanos. Durante o giro que fez pêlos Estados Unidos, em 1979, ele proferiu uma palestra na sede do National Ailiance, a atual agremiação nazista daquele país, criada e dirigida por William Peirce, um anti-semita fanático e antigo membro do Partido Nazista dos Estados Unidos nos anos 40. (26) Atualmente, todos os arqui-supremacistas e anüsemitas dos Estados Unidos e Canadá multiplicam as ideias de Faurisson e Rassinier, em milhares de panfletos e jornalecos ultradireitistas.

IV. BUTZ, IRVING E GARAUDY

O inglês David Irving, o norte-americano Arthur Butz e o francês Roger Garaudy constituem com Faurisson, o grupo dos principais protagonistas desta corrente mistificatória. Butz, que vive em Ilinois, onde leciona ciências da computação, é um racista clássico. Seu livro The Hoax ofthe XXTh Century, lançado em 1976, pela Noontide Press - a editora do Liberty Lobby- é fortemente influenciado pelas teses de Bardèche e Rassinier, que são retomadas (e repetidas) por Faurisson.

David Irving tornou-se conhecido em 1977, com a publicação do livro "A Guerra de Hitler" (New York, 1977). O livro é dedicado não a negar, mas a isentar Hitler de qualquer responsabilidade pelo extermínio, que o autor atribui principalmente a Heydrich e a Himmler. (27) Não se trata, portanto, de um texto negacionista, embora suas motivações ideológicas sejam claramente Hitleristas. Irving sustentava, nesse livro, que matanças em massa haviam sido cometidas desordenadamente e obedecido a uma dinâmica independente, inteiramente desconhecida de Hitler, que não as teria aprovado. Nessa fase, o objetivo de Irving era "des-demominzar Hitler" segundo a expressão de Martin Brozsat, um dos críticos mais duros da posição defendida no livro, que no entanto reconhecia que Irving obtivera sucesso em apresentar alguns documentos até então desconhecidos sobre o período nacional-socialista. (Brozsat, 1979:75-6)

Irving aderiu explicitamente ao negacionismo em 1988, ao publicar, simultaneamente no Canadá e na Inglaterra, a introdução do Leuchter Report (1988), um relatório pretensamente científico de autoria de um engenheiro que se dizia especialista em instalações de câmaras de gás para sentenciados à morte dos Estados Unidos. O trabalho de Fred Leuchter foi financiado pelo arquinazista canadense Emst Zundel, negacionista levado a julgamento no Canadá por racismo, que utilizou o relatório em sua defesa. O trabalho destinava-se a provar que os instrumentos usados em Auschwitz, Treblinka e Sobibor não eram adequados para a aniquilação em massa, e que sua função era a desinfeção sanitária, uma artimanha pela primeira vez sustentada por Maurice Bardèche. (28)

Em outubro de 1992, Irving apresentou teses definitivamente negacionistas numa conferência proferida no Instituí For Historical Review. Suas posições, em resumo, eram as seguintes: houve assassinatos em massa de judeus pêlos esquadrões de fuzilamento que operavam nos territórios ocupados da União Soviética; tais execuções eram conhecidas e aprovadas por Heydrich e Himmler, mas inteiramente desconhecidas de Hitler; centenas de milhares de judeus foram vítimas destes fuzilamentos, que se somaram aos maus tratamentos, às doenças, aos bombardeios aliados e à fome trazida pela guerra; câmaras de gás jamais foram usadas para o extermínio de pessoas.

De 1996 até o início de 2000, Irving esteve envolvido, na condição de autor, numa ação judicial contra a historiadora Deborah Lipstadt, cujo livro, Denying the Holocaust (1993), ele acusava de ter abalado sua reputação como conferencista e historiador independente. A ação foi julgada e Lipstadt absolvida, em abril de 2000. Irving fundamentou suas alegações nas memórias que Adolf Eichmann começara a escrever na Argentina. Segundo ele, uma parte das memórias - adquiridas do jornalista belga Willem Sassens e coletadas em 1950, em Buenos Aires - o convenceram de que a existência de câmaras de gás não passava de uma lenda. Esse estratagema foi desmascarado no julgamento de Lipstadt, que apresentou à Justiça inglesa os diários originais de Eichmann, escritos durante sua prisão em Jerusalém e liberados pelo governo israelense por solicitação da defesa da historiadora.

Em suma, as teses de Irving são as teses de Faurisson, de Butz e Rassinier. O próprio Faurisson as resume, no anexo ao seu artigo publico no Lê Monde, em 1978:

Conclusões (de trinta anos de pesquisa) dos autores revisionistas: (l) As "câmaras de gás" de Hitler nunca existiram. (2) Os "genocídios(ou os pretensos genocídios") dos judeus nunca ocorreram; claramente, Hitler jamais ordenou (ou permitiu) que alguém fosse morto por razões raciais ou religiosas. (3) As alegadas "câmaras de gás" e o alegado "genocídio" são uma única e a mesma mentira. (4) Essa mentira, essencialmente de origem sionista, permitiu uma gigantesca fraude político-finaceira cujo principal beneficiário é o Estado de Israel. (5) As principais vítimas dessa mentira e fraude são os alemães e os palestinos. (6) O tremendo poder da media tem garantido, até agora, o sucesso da mentira e proibido a liberdade de expressão daqueles que denunciam a mentira. (7) Os apoiadores da mentira agora sabem que ela agora está para ser desvelada; eles distorcem o significado e a natureza da pesquisa revisionista; eles chamam de "ressurgimento do nazismo" ou de "falsificação da história" aquilo que é apenas o retomo justo da preocupação com a verdade histórica (Thion et ai., 1980:89)

Esta é uma súmula dos elementos do evangelho revisionista: o estilo edificante dos negacionistas referirem-se ao seu próprio empreendimento de pesquisa histórica - que não passa, em realidade, de simulação ideológica; a identificação das causas do sofrimento do povo palestino com as causas do sofrimento do povo alemão, ambos alegadamente vitimados pela tirania judaica, além da denúncia da perseguição que sofre a pretensa pesquisa histórica que desenvolvem.

O mesmo arsenal de argumentos e as mesmas provas são utilizados pêlos diferentes pesquisadores da escola. Durante o julgamento de Klaus Barbie, o francês Roger Garaudy depôs como testemunha da defesa, sustentando que as deportações feitas por Barbie não se destinavam a centros de extermínio, porque estes não existiram. Mais recentemente, Garaudy, o ex-dirigente do PCF convertido ao Islã em 1982 depois de uma aproximação com intelectuais católicos, aderiu a esta modalidade de história como farsa, em seu livro Os Mitos Fundadores da Política Israelense (Velha Toupeira, 1995). O livro acrescenta à cantilena conhecida, a pretensão de revelar a génese oligárquico-judaica do mito do Holocausto, denunciando-o como elemento fundador do Estado de Israel.

Garaudy tornou-se um mártir da causa negacionista pela condenação que sofreu em 1999. A publicação do livro lhe valeu uma sentença de um ano de prisão, além de multa de 60 mil francos. (29) No entanto, para a propaganda de solidariedade terceiro-mundista, tão cara à Velha Toupeira, ele agregou credenciais intelectuais indiscutivelmente mais expressivas que as de qualquer de seus outros colegas, representantes, segundo o próprio Garaudy, da crítica científica da História:

Essas perseguições e repressões silenciosas contra a crítica histórica dos crimes de guerra de Hitler sustentam-se em premissas difamatórias e falsas: para mostrar os grandes crimes de Hitler contra os judeus e seus inimigos, contra os comunistas alemães e eslavos, que desejavam derrotá-lo, não são necessárias mentiras. De acordo com os adversários da crítica histórica ( que eles chamam de "revisionistas"), [as premissas] "tomam Hitler inocente ou ao menos atenuam seus crimes"! Para eles, a discriminação decorrente do racismo e o ódio racial demonstra que os crimes nazistas não foram confinados a um vasto progrom contra os judeus apenas, mas levaram 50 milhões de pessoas à morte, na batalha contra o fascismo.

É contra tal coro de ódio contra os pesquisadores críticos que estamos tentando, hoje, trazer os elementos desse dossier, bem como as suas fontes, na esperança que ele sirva para iniciar uma discussão genuína sobre as realidades objetivas deste passado, sem que se atribua a este ou aquele pesquisador motivos políticos, sem que se condene alguém antecipadamente à repressão e ao silêncio. (Garaudy, 1995:194)

Impressiona o modo como Garaudy, no ocaso de uma trajetória política e intelectual marcada por guinadas e rupturas ideológicas, alia-se a notórios racistas e anti-semitas. Para ele, Rassinier, Faurisson, Butz, Harwood, Irving, Roques (30) e Stãglich são intelectuais insuspeitos, devotados à pesquisa e à crítica de documentos. A todos ele considera pesquisadores sérios, preocupados unicamente com a realidade objetiva. (31) Essa insistência em se apresentarem como historiadores críticos, preocupados com a verdade e vítimas de perseguições, é uma forma dos negacionistas tentarem credenciar suas conclusões junto à opinião pública menos exigente ou, como no caso de Garaudy e da linha terceiro-mundista da escola, de fixarem uma posição anti-imperialista, cuja essência é, no entanto, uma propaganda anti-sionista que encobre o conhecido anti-semitismo político. Na parte final desta exposição, importa analisar, assim., os fundamentos destas conclusões.

V. NEGACIONISMO COMO RETORNO À CATEQUESE RACIAL

O que está em jogo quando discutimos as teses negacionistas? Em essência, a escola de Rassinier extrai tais teses do que seus protagonistas chamam de "crítica de documentos". A crítica, alegam, produz uma ruptura com o que, ainda segundo a escola, tornou-se a "opinião de consenso" acerca do destino dos judeus europeus durante a II Guerra. Nessa hiperatividade crítica, os negadores do Holocausto são certamente insuperáveis e originais. Insuperáveis na medida em que dedicam milhares de páginas para desmentir um fato indesmentível. E originais, porque não se conhece nenhum empreendimento que se pretenda científico ou critico sequer semelhante ao movimento dos negadores do Holocausto. As duas características tomam o negacionismo singular, mesmo entre degenerações e invencionices pseudo-históricas conhecidas, que na grande maioria dos casos, partem de premissas racistas (ou economicistas ou religiosas) para a construção de fantasias ao nível de hipóteses sobre a História. É própria desse tipo de pensamento a obsessão pela conspiração judaica, que alimentou a imaginação de vários publicistas anti-semitas a partir da segunda metade do século XIX.

Os negadores do Holocausto enquadram-se nessa tradição, mas se particularizam pela audácia de investirem na supressão de fatos relativamente recentes. Para isso, eles contam com uma metodologia cenográfica e aparentemente elaborada, alicerçada em retalhos do que eles consideram documentos definitivos (entrevistas de jornais do período pré-Guerra, depoimentos de vítimas e criminosos recolhidos fora de contexto, omissões deliberadas ao extermínio e estudos pretensamente técnicos). Tais documentos são reinterpretados ou superestimados e, dessa forma, transformados em evidências de atos de guerra do judaísmo contra Hitler ou de provas da inexistência de um plano para o extermínio.

É difícil pensar numa matriz histórico-científica mais "desapaixonada" do que esta. Além de historiadores profissionais, leitores que contam com níveis razoáveis de informação política e senso crítico, podem detectar que o material apresentado na literatura revisionista não atende a critérios históricodocumentais sequer aceitáveis. A mesma precariedade caracteriza a sua exegese literal de documentos, que é uma maneira elegante de dar nome ao que os negacionistas efetivamente exercitam: uma modalidade de ceticismo baseado em tecnicalidades e questionamentos de detalhes periféricos das evidências disponíveis. Não me deterei na discussão de questões alegadamente técnicas dos negacionistas. Há excelentes trabalhos a este respeito. (32)

Quero fixar-me mais no eixo da argumentação que sustenta o repertório de contestações a que recorrem os negadores do Holocausto.

Não são dissensos ou disputas metodológicas sobre critérios de pesquisa que entram nessa discussão, mas as características de uma mentalidade política alicerçada, por um lado, na invenção de um nazismo historicamente inocente e, por outro, na denúncia de Israel como um estado títere do imperialismo - que é apresentado como uma ordem política e económica, em última instância, controlada por judeus. Os pontos-chave dessa mentalidade são os seguintes:

Uma interpretação anti-semita sistemática da história (que invalida qualquer evidência do extermínio) e a constante exploração da judeofobia, que identifica o judaísmo com uma corporação político-econômica voltada para a dominação dos povos - ponto este que é ancestral, em termos ideológicos, na Europa e que foi racializado no final do século passado, tomado-se a essência da visão de mundo e da prática nazista. (33) A novidade é a receptividade deste anti-semitismo renovado, a partir da década de 50, pela propaganda de guerra do mundo árabe contra Israel, mesmo que tal recurso tenha merecido a reprovação de muitos intelectuais palestinos, que o têm denunciado como mistificatório, em várias oportunidades. (34)

O anti-semitismo fornece, em síntese, a base conceituai da escola negacionista, que tem servido de via de escape para dogmatismos de diversas extrações, nivelados e alimentados pela constante suspeita antijudaica. Uma modalidade de revisionismo fraudulento que, segundo Vidal-Naquet,

(...) encontra-se na encruzilhada de ideologias muito diversas e por vezes contraditórias, o anti-semitismo de tipo nazista, o anticomunismo de extrema-direita, o anti-sionismo, o nacionalismo alemão, os vários nacionalismos dos países do Leste europeu, o pacifismo libertário, o marxismo de extrema esquerda. Como é fácil prever, essas doutrinas aparecem ora em estado puro, ora e até na maioria das vezes, sob formas e combinações variadas. (Vidal - Naquet, 1990:129)

As doutrinas referidas pelo historiador, sejam em estado puro, sejam combinadas conforme a ocasião ou o propósito específico de cada autor, não fazem outra coisa senão atualizar, no Pós-Guerra, o mito da perversidade judaica, complementado-o com o disfarce da solidariedade terceiro-mundista. Foi esse aporte, aliás, que o aproximou de uma esquerda desgarrada e obtusa, impregnada de messianismo colegial e segregacionismo. Cega e inapta, portanto, para qualquer exercício de compreensão ou análise da natureza do conflito árabeisraelense ou palestino-israelense.

O esquema é funcional para a direita e para a esquerda do movimento. Nele, ambas realizam uma espécie de encontro dialético delirante. Hitleristas, anticomunistas e grupelhos erráticos marxistas utilizam-se das descrições administrativas do extermínio para negar a sua existência. Com isso, eles demonstram uma submissão de tipo confessional ao oficialês da burocracia nacional-socialista, que se destinava a encobrir o assassinato. Tais grupos valem-se da negação do extermínio para sustentar que o regime nazista (anti-imperialista, pacífico, e anticomunista, para os nazifascistas, ou mera decorrência do capitalismo, para os errático-marxistas) foi levado à guerra por um complô judaico, cujos interesses Hitler e seu regime haviam contrariado.

Dessa doutrina é extraída o recurso de argumentação característico dos negacionistas: a suspeição sistemática lançada contra toda a evidência do Holocausto. Testemunhos dos sobreviventes, documentos e fatos incontroversos sobre a sua planificação ou execução são simplesmente denunciados como invenções do sionismo internacional e dos governos que ele supostamente controla. Se essa suspeita é um padrão pavioviano na extrema direita europeia, é também uma perversão que instrumentaliza o anti-sionismo da esquerda negacionista, representada por Guilhaume, Thion e Garaudy.

Os interessados em história da cultura podem reconhecer os parâmetros teóricos da esquerda do movimento no antijudaísmo e no chauvinismo dos primeiros socialistas franceses, ou na critica anticlerical (e ainda messiânica) do judaísmo de alguns jovens hegelianos alemães da primeira metade do século XIX. Os elementos clássicos de uma modalidade de anti-semitismo proto-socialista aparecem em praticamente toda a obra de Charles Fourier, na obra de seu discípulo Toussenel, de Pierre Leroux e, sobretudo, em Pierre Proudhon. (35)

Merece ser destacada, quando discutimos a mentalidade anti-semita do revisionismo esquerdista, a apropriação que seus defensores fazem da monografia A Questão Judaica (1844), de Marx, que tem o mesmo nome de um livro de Bruno Bauer (1843). Os dois textos são complementares, assim como eram complementares os interesses de Bauer e Marx, antes da mptura ocorrida entre ambos em função da publicação de A Sagrada Família, ou Crítica do Críticismo Crítico (1845). (36) Na Questão Judaica, Marx tentava aprofundar a crítica de Bauer às demandas de emancipação política dos judeus alemães. Redigido no estilo profético dos jovens hegelianos, o texto de Marx é um trabalho da juventude e expressa o tipo de pensamento escatológico e materialista que precedeu a crítica econômico-política do Marx maduro. Tal fato, no entanto, não impede que o ensaio seja dogmatizado por anti-semitas de esquerda, que vêem no texto um reforço para a sua denúncia do anti-semitismo como o "socialismo dos imbecis", para usar a expressão de August Bebei, o líder dos social-democratas alemães do final do século passado. Não é outro o caso de Pierre Guiliaume, o ideólogo da "pós-messiânica" Velha Toupeira:

E a Velha Toupeira, onde se situa? A Velha Toupeira não é em nada anti-semita Ela reivindica um antijudaísmo radical que sempre foi proclamado urbi et orbi, tomando como autoridade o texto fundador de Kari Marx A questão judaica, que termina com a seguinte frase: "emancipação social do judeu é a emancipação da sociedade do judaísmo".

A Velha Toupeira milita em favor da emancipação social do judeu. Em conformidade com este princípio, temos publicado além de A Questão Judaica de Marx, O Anti-semitismo, sua história e suas causas, de Bernard Lázaro, História judia, religião judia e O peso de três milénios, de Israel Shahak, mais Judaísmo e alterídade, de Alberto d'Anzul. Pelo menos três dos quatro autores responsáveis pêlos textos programáticos da Velha Toupeira sobre este tema são judeus : Kari Marx, Bemard Lazare, Israel Shahak. Ou seja, que não temos nada a ver com a tradição anti-semita. Isto nos dá maior liberdade para assinalar que se têm caluniado exageradamente a muitos autores chamados anti-semitas e que se devem desculpas a alguns deles, cujos pontos de vista não compartilhamos, mas que têm sido tratados como verdadeiros monstros "anti-semitas" quando não faziam mais que enunciar verdades inquestionáveis sobre o conteúdo do Taimud, por exemplo.

A Velha Toupeira denuncia a metafísica da terra (de Israel) e do sangue (os filhos da aliança), ao que se reduz o judaísmo e do qual o nacional-socialismo é ideologicamente uma débil imitação (por antagónica). Mas reconhece plenamente a legitimidade do vínculo com a terra e a família, e a luta contra a extirpação de tudo o que controla o judaísmo, que é o resultado final da lógica totalitária do projeto judaico. (Pierre Guiliaume, 1998)

Na monografia de Marx, o modo de existência judaica é identificado ao modo de existência capitalista, uma tese cuja matriz é um judaísmo abstraio, um conceito que, como as demais categorias do pensamento de Marx, torna-se autónomo com relação à materialidade da sua existência real. Nessa perspectiva, a análise materialista e ainda escatológica do jovem Marx erra ao explorar um estereótipo do judaísmo que, se não era motivado racialmente, o era social e economicamente. Mas não se deve levar em conta leituras patológicas deste texto num debate sério. O texto tem sido redirecionado para o anti-semitismo pêlos seus equívocos e pelo seu estilo agressivo, que, no entanto, devem ser analisados no contexto amplo do pensamento de Marx e da época em que foi escrito. O trecho que Guiliaume procura canonizar só pode excitar a imaginação de anüsemistas se tomado isoladamente e deslocado do sistema conceituai do qual Marx se utilizava:

Estamos tentando quebrar a formulação teológica da questão judaica. Para nós, a questão da capacidade judaica para a emancipação torna-se a questão: Qual é o elemento social particular que deve ser superado para que o judaísmo venha a ser abolido? Pois a atual capacidade do judeu para a emancipação é a relação do judaísmo com o mundo moderno. Essa relação resulta necessariamente da posição especial do judaísmo no mundo contemporâneo atualizado.

Consideremos o judeu real do mundo, não o judeu sabático, como o faz Bauer, mas o judeu do dia-a-dia. Não olhemos para o segredo do judeu na sua religião, mas o segredo da sua religião no judeu real. Qual é a base secular do judaísmo? Necessidade prática, auto-interesse. Qual é a religião mundana do Judeu? A usura. Qual é o seu Deus mundano? O dinheiro.

Pois bem! A emancipação da usura e do dinheiro, consequente- mente, do judaísmo prático e real, será a auto-emancipação do nosso tempo. Uma organização da sociedade que abolisse as pré-condições da usura, e, assim, das possibilidade da usura, tomaria o Judeu impossível. A sua consciência religiosa seria dissipada como um nevoeiro no ar vital, real, da sociedade.

Pôr outro lado, se o Judeu reconhece que essa sua natureza prática é fútil e trabalha para aboli-la, ele se desamarra de seu desenvolvimento anterior e trabalha para a emancipação humana como tal e se volta contra a suprema expressão prática do auto-estranhamento humano. Reconhecemos no judaísmo, portanto, um elemento antisocial geral do nosso tempo, um elemento que através do desenvolvimento histórico - para o qual deste modo danoso os judeus zelosamente contribuíram - chegou até este nível presente, no qual ele deve necessariamente começar a ser desintegrar.

Numa análise final, a emancipação dos judeus é a emancipação da humanidade do judaísmo (Karl Marx, 1844).

Há componentes óbvios de exagerada repulsa anticlerical e de uma demasia panfletária neste texto. Há certamente margem para atribuir a Marx, neste e em alguns outros escritos, referências hostis a um judaísmo com o qual ele, apesar da sua origem, jamais teve contato. (37) Mas não há margem alguma para legitimar paranóias pseudomarxistas anti-semitas com base no que Marx efetivamente afirma sobre o judaísmo. A Questão Judaica é uma manifestação pontual de uma critica bem mais ampla, lançada contra toda a ilusão religiosa e contra toda a miséria real que está na base desta ilusão. É esta a compreensão filosófica dos jovens hegelianos de esquerda e, sobretudo, a compreensão do jovem Marx. E é essa compreensão que as mitologias anti-semitas suprimem quando propõem uma interpretação literal e atomizada deste texto.O apego a tal estereótipo é característico de anti-semitas que se dizem tão somente anti-judeus e contrários ao anti-semitismo racista, como Guiliaume, Thion e Garaudy; trata-se, portanto, de uma degeneração do pensamento de esquerda. (38) Nenhum marxista - à exceção de Wemer Sombart, antes de aderir ao nazismo (39) e daqueles que atuaram dentro do perímetro da propaganda stalinista - dedicou a tal texto uma exegese antijudaica. É, assim, uma estupidez querer transformar, como Guiliaume, A Questão Judaica em "texto fundador do antijudaísmo". (40)

O panfletarismo enraizado na crença de que o judaísmo é o arquétipo do capitalismo está presente em muitos textos do século XIX e ocupa um lugar central no enredo que faz da negação do genocídio a pedra-de-toque de teorias conspiratórias e fantasias de complôs secretos. É com base no uso dessa crença que a pseudo-história dos negacionistas manipula evidências e questiona a existência de um crime que ninguém pode seriamente pretender negar. Na realidade, o negacionismo só funciona, na História, em vista da operacionalidade do mito anti-semita. Ele é a tal ponto condicionado por esse tabu que seus defensores mais treinados em metodologia de pesquisa, como Irving, abandonaram as primeiras tentativas na direção de fazer com que o crime contra os judeus (os ciganos não merecem mais do que alguns comentários ocasionais) fosse historicamente (de alguma forma) relativizado.

No negacionismo, o crime é simplesmente suprimido, transformado em ficção e, nessa condição, atribuído a um plano de dominação judaica. Por essa razão, a ciência nada tem a dizer sobre tais manipulações, a não ser chamá-las pelo seu verdadeiro nome: elas não passam de mistificações flagrantes, fundamentadas em evidências e provas degeneradas, que nada revelam sobre a II Guerra ou sobre a política de extermínio de Hitler.

VI. A TÍTULO DE CONCLUSÃO: METODOLOGIA OU PATOLOGIA

A argumentação dos negadores do extermínio parte de um raciocínio que possui alguns pressupostos encobertos. No caso, há pelo menos dois pressupostos ocultos pela parafernália de argumentos e documentos que eles apresentam:

  1. o pressuposto mitológico, que recorre à anuência ainda que tácita dos leitores às doutrinas ocultistas da história, em especial as teorias do complô judaico, desenvolvidas no final do século XIX.
  2. o pressuposto mistificatório, que caracteriza as técnicas de estelionato documental destinadas a desacreditar as evidências do Holocausto.

Se a aceitação desse material dependesse de leitores críticos, as alegações negacionistas teriam tido uma brevíssima vida editorial. Elas persistem, no entanto, porque pertencem ao domínio de uma ideologia que está longe de ser politicamente ineficaz. Por essa razão, não estamos diante de apenas uma eventual curiosidade capaz de despertar um restrito interesse académico. Trata-se de uma fórmula capaz de dissolver diferenças aparentemente inconciliáveis, unindo dissidentes franceses do anarcotrotskismo e racistas obsessivos, aproximando antisionistas pró-Irã como Garaudy e demagogos da extrema direita, como Lê Pen e Jorg Haider. A fórmula de Paul Rassinier, Artur Butz e Paul Faurisson fez de grupelhos inexpressivos da esquerda, como a Velha Toupeira e de entidades racistas, como o Instituí for Historícal Review dos Estados Unidos, sedes da exploração em grande escala de um simulacro pseudocientífico nazista. O investimento simultâneo na humanização de Hitler (e de seu regime) e na satanização dos

judeus, sustenta uma indústria editorial de milhões de livros e ainda ajuda a conquistar votos em toda a Europa (cerca de 15 por cento do eleitorado).

Os revisionistas, bem como os herdeiros mais recentes do nazismo e do fascismo, sabem que dicotomias estúpidas e manipulações historiográficas são armas de propaganda eficazes. Exemplos de algumas dicotomias estúpidas: quem foi mais perverso, Hitler ou Stalin? Quem escreve a história, os vencidos ou os vencedores? Ora, os judeus obviamente não estavam em guerra, nem os ciganos, nem todos os demais grupos classificados como extermináveis por Hitler e seu regime insano. Em que sentido pode ser sustentada a tese de que a derrota do nazismo foi a derrota da Alemanha?

E quanto aos malabarismos aos quais se apegam os negacionistas através da análise literal de documentos? Um exemplo: Hitler jamais escreveu uma ordem de extermínio. Logo, Hitler jamais ordenou o extermínio. O termo assassinato ou extermínio jamais foi usado nos documentos nazistas. Logo, ele não ocorreu. Os nazistas falavam em desinfecção em câmaras de gás, logo o que eles faziam era literalmente desinfecção. Solução final não significava a morte dos judeus, mas a sua expulsão para a Europa Oriental.

Muitas questões podem colocar pesquisadores em desacordo, mas não me parece possível conceder credibilidade a uma corrente de pesquisa que fundamenta suas posições em ficções flagrantemente grotescas. Não se pode confundir pesquisa racional com propaganda, porque, para a primeira é necessário preservar os compromissos com a distinção entre o que é verdadeiro e o que é falso. Como os revisionistas dizem que estão fazendo História e, na História, a condição da critica e da interpretação é condicionada pela condição fatual e pela condição contextuai, é decisivo que o pesquisador seja rigoroso com relação aos meios que podem levá-lo a distinguir a realidade da aparência.

O compromisso com a verdade é um princípio geral da investigação científica. Não se trata de uma metodologia acabada. Há muitas razões metodológicas que tomam questões históricas fatualmente sombrias e mesmo indecidíveis; mas, nestes casos, tais razões devem ser claramente expostas. Esta é uma questão epistemológica fundamental. Fora da perspectiva racional (que envolve condição reflexiva, critérios metodológicos definidos e de alcance intersubjetivo) não há como ensaiar a mais trivial das conclusões, porque não há como escolher entre afirmar uma hipótese e negá-la. Nesse caso, quando o imaginário e o ideológico assumem a dianteira de uma análise que se pretende racional, o discernimento acerca do próprio assunto em discussão se esvai; e, sem ele, métodos de pesquisa comparada, de investigação de fontes e análise das evidências propriamente ditas, tomam-se simplesmente inúteis.

Os negacionistas colocam-se deliberadamente à margem da seriedade científica, mas isto não cria maiores dificuldades para suas pretensões. Há, na mentalidade contemporânea, espaço suficiente para crenças em fantasmagorias e insanidades e isto nada tem a ver com o fato de haver uma verdade suficientemente assentada sobre os destino de milhões de judeus europeus: eles foram exterminados de várias formas, por uma decisão política clara e uma máquina criada para o assassinato em massa. Os negadores desta verdade não oferecem nenhum argumento sério, não formulam nenhuma dúvida fundamentada, sobre o que já sabemos sobre os crimes nazistas. Suas objeções ao extermínio são distorções deliberadas. Por exemplo, há muitas razões para que os assassinos tenham evitado referir-se a essa barbárie planejada de maneira direta. A mais óbvia é a seguinte: para que a matança de crianças, mulheres, velhos e ou de qualquer um que fosse judeu, se tomasse viável na sua execução, as vítimas que estavam submetidas à dominação nazista, excluídas da comunidade racial, desprovidas de direitos, expropriadas e, finalmente, segregadas e desumanizadas, deveriam cooperar, comportando-se de modo disciplinado com relação a agenda de seus carrascos. As deportações dos guetos e das zonas ocupadas se processavam através de uma complexa e frágil rede de comando e encobrimento administrativo, que iria pêlos ares caso a matança fosse anunciada abertamente. Isto para não mencionar o temor de sabotagens e levantes nas áreas ocupadas, ou mesmo o boicote e a falta de cooperação das autoridades delegadas ou aliadas do Reich, às ordens de deportação Há, evidentemente, outras razões e os historiadores deste período têm analisado exaustivamente a natureza da burocracia e da lógica do genocídio. Não é necessário, aqui, estender-me mais sobre tais pontos. (41)

As referências explícitas, os comandos e as decisões ligadas ao extermínio foram sistematicamente evitadas, assim como foram destruídas muitas evidências dos crimes, que foram recobertos pela linguagem cifrada, a Amtssprache ou o oficialês controlado por Himmier, Heidrych e Muller, os principais executivos da "Solução Final". Em Amtssprache, as execuções nas câmaras de gás, por exemplo, eram chamadas de "tratamento especial" ou SB apenas (abreviatura de Sonderbehandiungeri) e as câmaras de gás recebiam o nome de Leichenkeller (câmaras mortuárias). (42)

Ora, se os negacionistas dizem que o comandante de Auschwitz, Rudolf Hoess, ou Heinrich Heydrich, o Chefe do Reichssicherheishauptamt (RSHA- Departamento de Segurança Nacional), quando falavam em "tratamento especial", por exemplo, referiam-se à desinfecção de piolhos, eles escarnecem da ver- dade histórica, que sequer é remotamente requisitada em suas pretensas pesquisas; o que eles realmente fazem é um jogo de persuasão, para o qual importa apenas a simulação da verdade, apenas a aparência de ciência e de crítica produzida por uma logorréia voltada para a sedução de ignorantes e protofascistas.

Como embuste cerrado, a primeira coisa da qual o anti-semitismo e a sua variante negacionista prescindem é precisamente a verdade. Aqueles que o elaboram e aqueles que concedem credibilidade a esse código, são sensíveis apenas à simulação da verdade e, por isso, são invariavelmente imunes à critica. O embuste somente subsiste na clausura de categorias bizarras (raça, conspiracionismo, dominação oculta) que o protegem das pressões do mundo real. Sempre que ameaçado por um argumento racional, um aparato psicológico de blindagem empurra o credo negacionista para dentro de si mesmo.

O racismo moderno, que nasceu no século XIX também com uma aparência de cientificidade, é, sem dúvida, um conjunto hermético de ideias inteiramente mentirosas e desumanas. O racismo - e o anti-semitismo em particular- toma tudo aquilo que é falso sobre a natureza humana, a base para a construção de certezas indestrutíveis ao nível da história e da economia. Sua noção central -a raçaé a negação de todas as ideias de utopia, a melhor expressão do ressentimento e do desejo político pela imobilidade social, do horror reacionário à mudança e à transformação. Numa carta escrita a Gobineau em 1853, a estrutura regressiva do racismo teórico já era denunciada por Tocqueville:

...Depois de acreditar que podíamos transformar-nos, cremo-nos incapazes de reformar-nos; depois de ter tido um orgulho excessivo, caímos numa humildade não menos excessiva; acreditamos poder tudo e hoje cremos nada poder e gostamos de acreditar que a luta e o esforço doravante são inúteis, e que nosso sangue, nossos músculos e nossos nervos serão sempre mais fortes do que nossa vontade e nossa virtude. É a grande doença do tempo: doença totalmente oposta àquela de nossos pais. Vosso livro, seja qual for a maneira de arranjardes as coisas, favorece-a em vez de combatê-la. (43)

O racismo, em qualquer nível, é a negação do humanismo. Como ideologia da reação, ele instaura a virtude, a perversão e a degeneração na própria constituição natural dos indivíduos, que assim são agrupados em campos de pureza ou impureza biológica. O racismo faz a fusão entre História e Biologia, entre Moral e Natureza. Bem e mal, nobreza e vulgaridade, dignidade e corrupção, são transfor- mados em tipos genéticos, que podem ser conservados, implementados ou eliminados por um Estado- guardião da integridade racial de seu povo. Na metade do século XIX, quando essa perversão do Iluminismo passou a ser elaborada como uma filosofia da história da reação, humanistas como Tocqueville foram capazes de perceber a sua essência regressiva, mas eles não poderiam antecipar as consequências que o uso político de argumentos raciais trariam para a Humanidade.

Estritamente, o racismo não responde à razão, porque não é um argumento, mas uma patologia racionalizada. Ele não pode ser vazado por objeção alguma, incluindo-se aí a objeção da realidade que, mesmo sendo a maior evidência da sua mentira, mostra-se impotente para atravessar a muralha ideológica que um regime político totalitário pode erguer em tomo da sociedade que ele coloniza.

Agrupamentos e partidos políticos xenófobos da atualidade substituíram a forma biológica desta patologia pela forma culturalista. A preservação da "pureza racial" deu lugar à defesa da "identidade cultural autêntica". Não há distinção de fundo neste apelo. O racismo e o integrismo cultural supõem uma comunidade de sangue ou de cultura monolíticas e condicionam a identidade pessoal pela absolutização das diferenças. Essa ideologia proíbe qualquer raciocínio que não seja derivado do medo da mestiçagem, do ódio aos inimigos da raça ou da tradição. A absolutização do direito à etnodiferença convoca à coesão de uma tribo ancestral, evoca o retomo a um passado que existe apenas como mito. Essa redução atávica não é apenas falsa; ela é perversa, do ponto de vista político, porque imobiliza diferenças culturais, assim como o racismo Hitlerista imobilizava o fenótipo e fazia dele a base da sua hierarquia racial.

Os ideólogos neonazistas dedicam-se a reorganizar o mito da conspiração judaica mundial em vista de objetivos políticos renovados. Eles são racistas, em sua grande maioria. Há também os judeófobos que migraram de um esquerdismo salvacionista para o anti-sionismo, que é o lugar onde eles materializam a tirania judaica. Com isso, os dois agrupamentos se unem para reativar a funcionalidade de ressentimentos regressivos e da heterofobia, que continuam a seduzir, sem que deixemos de nos espantar, parcela considerável de eleitores europeus e a atiçar mitologias supremacistas em todo o mundo. Temos aí uma nova investida da catequese pelo racismo e pela mitologia conspiratória. Compreendêla adequadamente é, certamente, a atitude correia. Alguns têm ainda defendido a posição de ignorá-la, mas esta me parece uma forma equivocada de avaliar o problema do negacionismo. Confrontá-la com razões e posicionamentos claros é um passo efetivo no sentido de fazê-la refluir. Devemos isso à memória dos que foram mortos em Auschwitz, Beizec, Treblinka, Sobibor, Majdanek, Chelmno, às vítimas da eutanásia, das torturas, dos trabalhos forçados, dos fuzilamentos, do confinamento em guetos, dos que resistiram e dos que enfrentaram o nazismo. Devemos, sobretudo, a nós mesmos e ao nosso futuro como civilização.


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ANEXO

ANEXO APELO À VIGILÂNCIA

publicado no Lê Monde, em 13 de julho de 1993 republicado em 13 de julho de 1994, com mais de 1500 assinaturas de intelectuais franceses, alemães e italianos.

Estamos preocupados com o ressurgimento, na vida intelectual da França e da Europa, de correntes antidemocráticas de extrema-direita. Por isso/ alguns de nós começamos, desde janeiro de 1993, a manter encontros regulares para trocarmos informações e observarmos mais atentamente tais questões.

Não constitui fato novo que os ideólogos da extrema-direita desenvolvam suas atividades como autores e editores ligados a redes antidemocráticas e neonazistas. Essa atividade não está mais confinada a algum tipo de clandestinidade. Sua nova visibilidade a torna facilmente verificável, possibilitando a obtenção de informações inquietantes a seu respeito.

Essas mesmas pessoas pretendem fazer com que se acredite que elas mudaram. Para tanto, empreendem uma ampla operação de sedução dirigida a personalidades democráticas e a intelectuais, entre eles alguns conhecidos nomes da esquerda. Mal informados sobres tais atividades e sobre tais redes ou completamente desavisados, alguns concordaram em assinar artigos em revistas dirigidas por estes ideólogos. Uma vez apanhadas em tal cilada, as assinaturas destas personalidades são obviamente usadas para dar crédito à ideia de que a alegada mudança é uma realidade.

Tal operação não é isolada. Ao contrário, ela está ligada à estratégia corrente de legitimação da extrema-direita, que faz fogo de qualquer pedaço de madeira. Tal estratégia beneficia-se da multiplicação de diálogos e debates e, por exemplo, daquilo que é chamado de "o fim das ideologias", do suposto desaparecimento de toda a clivagem política entre a esquerda e a direita, do suposto renascimento das ideias de identidade nacional e cultural. Essa estratégia também se alimenta da tese da moda que ao mesmo tempo denuncia o anti-racismo como algo perigoso.

Esses autores são favorecidos pelo o fato de que tais operações parecem não ter motivado a desconfiança dos editores e das pessoas que dirigem a indústria jornalística e audiovisual. Por falta de vigilância e informação, por escrúpulos com relação à liberdade de expressão, por preocupação com uma tolerância sem limites, um bom número destes editores e dirigentes da indústria jornalística - entre os quais há muitos que merecem estima- fazem, atualmente, sem o desejar, o jogo desta operação de legitimação.

Contando com a generosidade destas cumplicidades involuntárias, tememos ver muito brevemente institucionalizada, na nossa vida intelectual, a presença de discursos que devem ser combatidos, porque ameaçam, ao mesmo tempo, a democracia e as vidas humanas. Não podemos esquecer que as colocações dessa extrema-direita não são apenas ideias entre outras, mas sim incentivos à exclusão, à violência e ao crime.

É por essa razão que, neste julho de 1993, decidimos fundar o comité "Apelo à Vigilância", que objetiva coletar publicamente e fazer circular a mais ampla e útil informação destinada à compreensão das redes de extrema-direita e das suas alianças na vida intelectual (em editoras, na imprensa e nas universidades), bem como manifestar a nossa opinião sobre qualquer tema relacionado a tais questões.

Assumimos o compromisso de recusar qualquer colaboração com revistas, trabalhos coletivos, emissões de rádio e televisão ou conferências dirigidas e organizadas por pessoas cujas ligações com a extrema-direita estejam comprovadas.

A França, obviamente, não é o único país europeu nas quais as estratégias dos extremistas são colocadas em prática. Por isso chamamos à vigilância na Europa, convidando a qualquer pessoa que aprove a nossa iniciativa a assinar esse manifesto.

Assinam este manifesto:
Miguel Abensour
Henri Atlan
Marc Auge
Lothar Baier
Norbbert Bensaïd
Yves Bonnefoy
Pierre Bourdieu
George Charpak
Claude Cohen-Tannudji
Michel Deguy
Jacques Derrida
Louis-Rene of the Forests
George Duby
Olivier Duhamel
Jacques Dupin
Umberto Eco
Arlett Farge
Lydia Fiem
Nadine Fresco
Jacques Glowinski
Françoise Heir
Yves Harrowing
François Jacob
K.S. Karol
Jean-MarieLehn
Nicole Loraux
Patrice Loraux
Charles Malamoud
André Miquel
Phillippe Nozières
Maurice Olender
Michelle Perrot
Evelyne Pisier
Leon Poliakov
Jean Pouillon
Jacques Revel
Rossana Rossanda
Jean-Pierre Vernant
Lucy Fortify
Paul Virilio
Pierre Vidal-Naquet


Texto da conferência proferida em 10 de agosto de 2000.

Notas:

1. O anti-semitismo funcionava como elemento ideológico aglutinador de uma visão antiliberal, antidemocrática e anticomunista, nas circunstâncias que levaram o NSDAP à chegada ao poder, em meio a crise dos anos 30. Como substrato de um contrato racial celebrado com vários setores da sociedade alemã, a negatividade absoluta atribuída aos judeus representava, para a pequena burguesia e parte significativa do proletariado alemão, que cederam às seduções da doutrina de raças, a forma de superação de problemas económicos. Além de servir de suporte para a ideia de hegemonia racial, que os nazistas diziam ameaçada pela convivência com raças e crenças políticas degeneradas. O racismo agressivo nazista, uma espécie de bio-economia e biopolítica, tomou-se hostil a todos os não-arianos (ciganos, eslavos) que disputavam a ocupação de seu espaço vital. O recrudescimento do conflito e das políticas de exclusão e segregação transformaram a biopolítica em extermino de massa dos diferentes (definidos como inferiores), levando o regime de Hitler a priorizar a eliminação dos inimigos raciais nas fases mais agudas da guerra.

2. Além dos milhares de testemunhos registrados ( de sobreviventes, de testemunhas, dos próprios criminosos) nos julgamentos de Nuremberg, Frankfurt e Cracóvia, ou de Eichmann (em Jerusalém) e Klaus Barbie( em Lyon) de outros criminosos nazistas e colaboracionistas, que se constituem em provas diretas, há a documentação administrativa do período, tanto na própria Alemanha, como nos países que estiveram sob ocupação nazista ou eram aliados de Hitíer. Arquivos da Polónia, da ex-União Soviética (ainda em fase de exploração e pesquisa), Holanda, França, os países nórdicos, Grécia e os países do Leste Europeu, como Hungria, Roménia, lugoslávia e Tchecoeslováquia constituem as principais fontes documentais do extermínio. Os maiores centros de documentação sobre o Holocausto são o Yad Vashem (Jersusalém), o CDJC (Centre de Documentation Juive Contemporaine, Paris), a Wiener Library (Londres), ao Rijksinstituut voor Oologsdocumentatie (Amsterdã) e o Zydowski Instytut Historyczny (Varsóvia).

3. Reproduzido por Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém, Companhia das Letras, São Paulo, 2000, p.33.

4. Muitos ultrapacifistas da SFIO aderiram ao vichismo depois de 1940. Sobre o pacifismo de Rassinier e a sua oposição a León Bium, ver Pierre Vidal Naquet, Os assassinos da Memória, p. 56-7

5. O livro foi prefaciado por Albert Paraz, redator de Rivarol, ver nota 7.

6. Brasilach foi fuzilado pela Resistência depois da Libertação.

7. Em 1948, Bardèche criou a Lês Sept Couleurs, que tomou-se a maior editora anti-semita francesa, superando suas similares, a Librairie Française e a Nouvelles Édiüons Latines. A revista " política e literária" Défense de 1'Occident é criada também em 48, juntamente com o semanário Rivarol. O primeiro número da Défense circulou apenas em dezembro de 1952 e até 1982 foi conduzida por Bardèche, que publicou suas primeiras interpretações sobre o tema do genocídio entre 1948 e 1952 ( Nuremberg ou Ia terre Promise e Nuremberg II ou lês Faux Monnayeurs), nos quais acusava os judeus de terem causado a guerra. Polemista, panfletário e crítico literário, seus escritos faziam a defesa incondicional do fascismo. Seu livro mais conhecido, com tradução em várias línguas, é Qu 'est-ce que lê fascismo (O que é o Fascismo) de 1961. Para Bardèche, o fascismo era a autêntica expressão política da cultura europeia, em oposição ao liberalismo americano e ao bolchevismo de Moscou. Bardèche empregava o método de análise literal de documentos sobre o extermínio, que seria aperfeiçoado por Rassinier e Faurisson em seus textos. Sobre essa personagem do extremismo do Pós-Guerra, ver Ghislaine Desbuissons, "Maurice Bardèche, Ecrivain et theoricien fasciste?", in. Revue d'Histoire Moderno et Compemporaine, Paris, janeiro-março, 1990.

8. Nascido como uma trincheira de rearticulação ideológica e operacional do extremismo, o MSE teve uma curta existência, devido às dissidências entre os núcleos latino(vichistas e fascistas) e alemão (nazistas) do movimento. A tendência nacional-socialista da Internacional Negra foi reagrupada sob o nome de Nova Ordem Europeia, e passou a ser presidida pelo suíço Amaudruz (ainda vivo), autor do livro "Ubu justicier au premier preces de Nuremberg" fCh. de Jonquiére, Paris, 1949).

9. Os mais erudito representante deste tradicionalíssimo vichista antidemocrático é Charles Maurras. Ver sobretudo seus livros A ordem e a desordem (1964) e O Porvir de uma inteligência (1965).

10. Depois da expulsão, Rassinier passou a publicar artigos nos órgãos da Federação Anarquista da França, como Lê Monde Libertaire, Ia Voie de Ia Pax, Contre-Courant e Défense de 1'Homme. São textos de análise de conjuntura económica mundial, que lhe renderam a reputação de especialista entre os anarquistas. Em 1961, no entanto, anarquistas alemães denunciaram que seu livro "A Mentira de Ulisses" havia sido publicado na Alemanha, por uma editora neonazista. A denúncia esfriou sua rela cão com os anarquistas, que finalmente romperam com Rassinier em 1964, ao descobrirem a sua atuação como colaborador do semanário Rivarol, de Maurice Bardèche. Ver Nadine Fresco, Rassinier, Paul, Dictionnaire du mouvement ouvrier français, 1991, p. 395.

11. A revista foi criada em 1947 por Eberhard Fritsch, também refugiado nazista em Buenos Aires, juntamente com o jornal diário "Die Freie Presse", ambos editados pela Editorial Durer. Leers e Fritsch, ao lado de Hans Uirisch Rudel ( coronel aviador da Luftwaffe), Wilfred von Oven (do Ministério da Propaganda), Kari Freiherr von Merk (correspondente do diário oficial do NSDAP, o "Vólkischer Beobachtef ) e Reinhard Koop, do Serviço de Informações do Exército Alemão, o Abwer, são destacados protagonistas alemães, na Argentina do Pós-Guerra, da Internacional Negra. Der Weg circulou sem interrupções até 1957, quando Fritsch deixou Buenos Aires para se estabelecer na Áustria e Von Leers, no Egito. A revista voltou a circular de 1962 até 1977, mais moderada com relação ao antisemitismo e à defesa do nazismo, sob a direção do editores da Deustche Kommentare am Rio de La Plata, mais tarde La Plata Ruf. Com a revista Dinâmica Social, porta-voz dos imigrantes fascistas nãoalemães, reunidos no Centro de Estúdios Económicos e Sociales . Segundo Cristián Buchrucker, "rapidamente estabeleceu-se uma rede de colaboração entre o grupo alemão e o latino, sendo as coincidências ideológicas quase totais". Ver Cristián Buchrucker, Los Nostálgicos dei 'Nuevo Orden' Europeo y sus vinculaciones com la cultura política argentina de la Postguerra", Proyeto de Investigacion de la CEANA, fevereiro de 1998).

12. Para a troca de correspondência entre Rassinier, Bardèche e Von Leers, ver Florent Brayard.Comment l'idee vint à M. Rassinier, Naissance du révisionnisme, Fayard, 1996. Sobre as atividades de conhecidos nazistas alemães depois da Guerra, ver Patrice Chairoff, Dossier néo-nazisme, Editions Ramsay, 1977. Sobre a adesão de Rassinier ao nazismo, ver Nadine Fresco, Fabrication d'un antisémite, Seuil, 1999.

13. São deste período L'Equivoque Révolutionnaire (1961), Uysse trahi par lês siens (1961) e Lê véritable procés Eichmann (1962).

14. Louis Darquier de Pellepoix, Chefe do Departamento Para Assuntos Judeus do Governo de Vichy, entre 42 a 44. Derquier sucedeu a Xavier Vallat no Departamento criado por Pierre Lavai, o homem forte do gabinete de Petain, para ajudar as autoridades alemãs na tarefa de tomar a França judenrein (livre de judeus), segundo a expressão de Himmier. Já octogenário, Darquier concedeu a entrevista de seu exílio na Espanha, para onde fugira depois da libertação.

15. O comentário foi feito numa carta distribuída aos jornais franceses, reproduzida no livro de Serge Thion Vente historique ou vente politique ? Lê dossier de l 'affaire Faurisson. La question dês chambres à gaz.. La Vieille Taupe, Paris, 1980.

16. O panfleto foi distribuído durante uma manifestação de repúdio ao nazifascimso, motivada pela explosão de uma bomba na frente da sinagoga da Rua Copémico, em 3 de outubro de 1980. Nele se lia: "Nossas sociedades de classes têm a necessidade constante de propor, às populações oprimidas, falsos inimigos e erros fabricados em lugar de verdades. Basta de anti-semitismo. Basta de antifascismo. Ambos são o 'socialismo dos imbecis'. A deportação e a concentração de milhões de pessoas não se limitam a uma ideia infernal dos nazistas. Elas têm a ver, sobretudo, com a falta de força de trabalho exigida pela máquina de guerra, que as tomam uma necessidade. Os deportados que não voltaram estão mortos por causa da guerra. A única atitude revolucionária possível é a subversão de toda a propaganda de guerra. Provavelmente, jamais chegaremos a obter uma prova científica da não-existência das câmaras de gás de Hitler". O panfleto é citado numa segunda edição (1981) do artigo de Nadine Fresco "Lês Redresseurs de Morts cuja primeira versão apareceu na revista Lês Temps Modernos de junho de 1980.

17. Na Itália, o grupo Programa Comunista, uma antiga dissidência do Partido Comunista Italiano, liderada por Amadeo Bordiga, defendia as posições negacionistas de Rassinier, desde a década de 70. Atualmente essa esquerda negacionista italiana é representada por Cesare Saletta.

18. Para informações detalhadas sobre a Velha Toupeira, ver o ensaio "Os assassinos da Memória", de Pierre Vidal-Naquet, que integra a coletânea Lês assassins de Ia mémoire et autres essais sur lê revisionismo, Un Eichmann de papier, Éditions La Découvert, Paris, 1987 (trad. port. Papirus, 1990)

19. Além de ambos, destacava-se no grupo Jean Gabriel Cohn Bendit (irmão de Daniel, o líder da revolta estudantil de 68), que admitia a implementação de uma política exterminacionista pêlos nazistas, mas rejeitava a existência das câmaras de gás. Ver suas posições na coletânea Intolerâble Intolerance, La Vieille Taupe, Paris, 1981.

20. Em '"Lês révisionistes' négateurs de la Shoah", Encyclopaedia Universalis, Paris, 1990.

21. No livreto "Die Auschwitz Luege", publicado em 1973, na Alemanha, Thies Christophersen, ex-oficial da SS, narra a sua visita a Auschwitz, onde afirma terem ocorrido apenas cremações de cadáveres de judeus vitimados pelo tifo. Ainda em 1973, aparece o primeiro livreto negacionista escrito nos Estados Unidos, The Six Million Swindie, de Austin J. App. Em 1974, na Inglaterra, Richard Harwood (ou Richard Verral) publica Did Six Million Really Die?, em que defende a tese da invenção do Holocausto como forma de dar sustentação às políticas "multinacionais" da Inglaterra e dos Estados Unidos. Harwood é o primeiro a lançar mão da "prova" de que as políticas antijudaicas de Hitler foram motivadas por uma declaração de guerra dos judeus contra a Alemanha: a carta de Chaim Weizmann para Nevile Chamberlain, publicada em 29 de agosto de 1939 no The Times. Ainda em 74, Wilhelm Stãglich, também ex-SS, publica um artigo na mesma linha, na revista nazista de K.O.Priester Nation Europe. Em 1976, Arthur Butz lança, na Inglaterra, The Hoax ofthe XXth Century, que é certamente o mais dissimulado exercício de farsa historiográfica da linha negacionista. Redigido em estilo analítico rassinieriano, o texto evita os excessos de emocionalismo típicos em seus congêneses, mas apresenta a mesma manipulação historicista conspiratória, além de tentar demonstrar, obviamente, que as câmaras de gás não existiram.

22. A petição, com o título abjeto "Serão as câmaras de gás indispensáveis para a nossa felicidade", circulou entre universidades dos Estados Unidos e foi publicada no livro de Thion, Vente Historique ou verité politique. A imprensa (Lê Monde, Lê Matin e Liberation, nos meses de dezembro e janeiro de 1980) deu grande destaque às posições de Chomsky. Reproduzo aqui o texto da petição, que é ilustrativo da polémica, na qual envolveu-se destacadamente (contra Chomsky) o historiador Pierre VidalNaquet: "O Dr. Faurisson tem aluado com um professor respeitável de literatura francesa do século XX e de crítica de documentos, por quatro anos na Universidade de Lyon -2, França. Desde 1974, tem conduzido uma pesquisa histórica independente sobre a questão do "holocausto". Desde que começou a tomar públicas suas descobertas conclusões (findings), o Professor Faurisson tem sido alvo de uma campanha viciada de perturbação, intimidação, difamação e violência física, numa grosseira tentativa de silenciá-lo. Funcionários atemorizados têm tentado impedi-lo de prosseguir nas pesquisas, negando-le acesso a bibliotecas públicas e a arquivos. Nós protestamos fortemente contra os esforços que querem privá-lo de sua liberdade de fala e expressão e condenamos a vergonhosa campanha para silenciá-lo. Apoiamos fortemente o direito do Professor Faurisson à liberdade académica, e demandamos que representantes da universidade e do governo façam todo o possível para garantir a sua integridade e o livre exercício de seus direitos legais".

23. Ver a autocaracterização de Chomsky em Mémoire en defénse. Prefácio.

24. É sintomático, aliás, que o próprio Chomsky, no prefácio ao livro de Faurisson, demonstra não ter dedicado muita atenção ao texto que prefacia e que sua solidariedade não é lá muito criteriosa: "Frequentemente assinei petições que, de fato, eram muito extremas, em favor de dissidentes russos, cujos pontos de vista eram absolutamente odiosos, por exemplo, que apoiavam a carnificina dos ame- ricanos na época em que [a carnificina] estava destruindo a Indochina, que apoiavam a guerra nuclear ou [apoiavam] um chauvinismo religioso remanescente da Idade Média. Jamais alguém manifestou qualquer objeção. Se alguém o tivesse feito, eu o ofereceria o mesmo desprezo que ofereço aos que denunciam a petição em favor dos direitos civis de Faurisson, e pelas mesmas razões". (Mémoire en defense, Prefácio, p. xii). As "razões" de Chomsky, no entanto jamais estiveram em jogo no caso do "solitário Faurisson". O Centro de Documentação Judaica de Paris não é uma biblioteca pública, mas uma instituição privada. Além disso, protestos de estudantes contra as posições nazifascistas de Faurisson seriam de se esperar e jamais atingiram níveis de "violência física". Para completar, podese discutir se uma questão dessas deve ser levada aos tribunais, mas não se pode caracterizar como "campanha de intimidação" as açôes judiciais, abertas contra Faurisson e seus editores por organizações como a LICRA (Liga Internacional contra o Racismo e o Anti-semitismo) e a M.R.A.P (Movimento Contra o Racismo e Amizade entre os Povos).

25. O Congresso reuniu os nomes mais famosos do revisionismo dos dois continentes, como americano Austin App, referido acima e editor do A Voz dos gennano-amerícanos, Udo Wallendy, membro do proscrito Partido Nazista da Alamanha e Arthur Butz.

26. A indústria negacionista norte-americana é, desde a década de 80, a mais poderosa e atuailel Organizada em tomo do Instituí for Historical Review (IHR), que realiza seu Congresso Revisionista Mundial anualmente, essa indústria é coordenada por Greg Raven e Marc Weber. Atualmente, o IHR é dirigido por Lewis Brandon (ou David Macloud). Seu fundador é Willis Carto, um dos mais ativos xenófobos ultradireitistas americanos, que preside o Liberty Lobby desde a década de 60. Faurisson e Butz fazem parte do Comité Consultivo do IHR, que edita a maior parte de seus livros e artigos, no Journal of Historical Review. A visista de Faurisson à sede da National Ailiance foi registrada pelo . boletim do partido, o National Ailiance Buletin, de outubro de 1979.

27. Seu primeiro livro é de 1963, The Destruction ofDresden, no qual acusava a desnecessária brutalidade dos aliados contra os alemães.

28. Ver Débora Lipstadt, Denying the Holocausto New York, 1993, p. 50. O relatório não passa de uma mistificação pseudocientífica que os negacionistas divulgam como prova definitiva da inexistência de câmaras de gás.

29. Garaudy foi condenado com base na Lei Gayssot, aprovada em 1990 pela Assembleia Nacional da França. A lei pune a propaganda a e manifestação pública que contesta a negação do extermínio nazista na II Guerra e a carateriza como incitação ao ódio racial. Garaudy, até 1970, foi um respeitado intelectual da esquerda francesa e herói da resistência. Dirigente do Partido Comunista Francês até 1956, escreveu alguns textos sobre o marxismo do século XIX, como Deus está morto: Estudos Sobre Hegel (1962), Karl Marx (1965) e Lênin (1968) No final dos anos 60, adere as teses humanistas do Partido Comunista Italiano e inicia uma aproximação com o pensamento católico, distanciando-se progressivamente do materialismo e da denúncia da religião, o que conduz à sua expulsão do PCF em 1970. Nos anos 70, publica vários textos, onde expressa preocupações utópicas e proféticas. Em 1982, converte-se ao Islã e dedica-se à pesquisa das relações entre as culturas islâmica e europeia. Nos anos 90, assume posições anti-sionistas radicais, que o levam a professar a teoria da conspiração judaica mundial e, finalmente, o negacionismo de Rassinier e Faurisson.

30. Engenheiro de profissão, seguidor do método Bardèche - a análise literal de documentos, aperfeiçoado por Rassinier, Butz e Faurisson- Henri Roques chegou a doutorar-se na Universidade de Nantes, em 1985, com uma tese sobre os diários de um oficial da S S, no qual são descritas algumas visitas aos campos de extermínio da Polónia.

31. A tese de Roques foi defendida na Faculdade de Le,tras, diante de uma banca de professores de literatura, depois de ter sido recusada pela Universidade de Paris-IV. Um ano depois, o doutorado foi cassado pelo Ministro da Educação da França, por desonestidade e fraude documental. Roques havia sido secretário-geral de um grupelho nazista, entre 1955 e 1958 - a Falange Francesa. Sua tese tinha o título "As confissões de Kurf Gerstein. Estudo comparativo de diferentes versões". O trabalho foi publicado em 1987 nos Anais de História Revisionista, dirigidos por Pierre Guilhaume e editados, entre 1987 e 1989, pela Vieille Taupe.

32. No Brasil, essa escola encontrou em Gustavo Barroso a sua figura mais expressiva e, no seu tempo, reconhecida por círculos intelectuais. A primeira filosofia da história fundamentada no racismo foi publicada por Arthur de Gobineau, em 1853, sob o título "Essai sur Finégalité dês races humanines". A obra incorporava os elementos da nova antropologia naturalista, que encontrou no racismo a condição que lhe conferiu estatuto de ciência. No texto de Gobineau não há nenhuma marca negativa especial na raça judaica. O anti-semitismo somou-se ao arianismo de Gobineau, no entanto, para tomarem-se praticamente inseparáveis no racismo que se instalou na cultura europeia do século XX. Para uma visão detalhada deste casamento, ver León Poliakov, O Mito Ariano, São Paulo, Perspectiva, 1974. Na França do final do século XIX, por outro lado, o anti-semitismo histórico tomou-se uma verdadeira obsessão da opinião pública. A grande síntese histórica anti-semita francesa foi escrita por Édouard Drumont, La Trance juive (1886), livro que alcançou, apenas no seu ano de lançamento, 114 edições. Na década seguinte, o anti-semitismo tornou-se a marca do conservadorismo católico e militar francês, bem como tema predileto da opinião pública. O jornal de Drumont, La Libre Parole, foi fundado em 1892 e, através dele, o judaísmo foi denunciado como responsável pelo escândalo financeiro do Canal do Panamá. O mesmo jornal tomou-se o porta-voz da campanha anti-Dreyfus, que monopolizou e dividiu a França em tomo do tema judaico. Nesse contexto, é desnecessário acentuar a importância e a influência em toda a Europa - e especialmente para o emergente movimento nazista alemão, a partir de sua ampla difusão, em 1917, dos Protocolos dos Sábios de Sião, que é a peça conspiracionista mais celebrada da história do anti-semitismo.

33. A conferência do professor Dietfrid Krause-Vilmar, que faz parte desta coletânea, aborda pontos ilustrativos da fragilidade dos argumentos técnicos dos negacionistas. Para aqueles que desejam aprofundar a discussão sobre as tecnicalidades negacionistas, sugiro ainda o livro de Deborah Lipstadt, já referido. Uma análise do argumento químico recorrente de Leucheter em Faurisson e Butz, é feita também em "Os assassinos da Memória", de Vidal-Naquet.

34. Cf. Norman Cohn. A Conspiração Mundial dos Judeus: Mito ou Realidade, São Paulo, Ibrasa, 1969.

35. Como observei acima, a longevidade do conflito no Oriente Médio abriu as portas para a recepção dos estereótipos do anti-semitismo europeu clássico no mundo árabemuçulmano. Por outro lado, órgãos como a Revue d'eludes palestinniennes, desde o início dos anos 80, têm condenado veementemente a difusão de clássicos anti-semitas, como os Protocolos dos Sábios de Siâo e Mein Kampf junto à população árabe. Desde a quebra na lógica da confrontação e do reconhecimento recíproco de israelenses e palestinos, há um refreamento natural, embora lento, da belicosidade ideológica palestina baseada no anti-semitismo.

36. De Proudhon, ver De Ia justice dons Ia Révolution et dans l'Egliese, principalmente a parte IV. Toussenel é o autor do livro Lês Juifs, róis de Fépoque (1844), um clássico do anti-semitismo de grande penetração popular, a que se seguiu o livrete de mesmo nome de Leroux (1846).

37. Ver Poliakov, História do Anti-semitismo: de Voltaire a Wagner, pp. 359-62. O preconceito antijudeu que aparece na "Questão Judaica" manifesta, muito provavelmente, alguns problemas que Marx tinha ao lidar com sua saída da religião ancestral (ele era neto de rabino e filho de um funcionário público, que convertera sua família ao protestantismo em 1824, quando o filho Kari tinha sete anos). É também ilustrativo de um fenómeno assimilacionista tipicamente alemão, que levou muitos intelectuais judeus da geração de Marx a abandonarem o judaísmo. Um dos mais interessantes casos desta migração para o cristianismo - que era um meio disponível aos judeus para serem aceitos na pequena burguesia alemã - é o de Heinrich Heine, amigo e admirador de Marx, mas crítico veemente dos seus ataques ao judaísmo.

38. Cf. Leon Poliakov, História do Anti-semitismo, De Voltaire a Wagner, Perspectiva, São Paulo, pp.347-363.

39. Hannah Arendt lembra que "a questão judaica" nos séculos da emnacipação (XVII a XIX), era uma questão muito mais política do que económica. Parece ser um ponto assentado, na literatura sobre o tema, que os judeus da Europa Central e Ocidental cumpriram o papel de estamento corporativo residual ou de "nterposição de classe", num período em que a sociedade feudal se desintegrava e dava lugar a uma sociedade de classes, na qual a burguesia via os investimentos no Estado como improdutivos. Esta é a época em que os financistas europeus eram, em grande parte, judeus. Eles representavam, portanto, uma economia pré-capitalista em extinção e, somente por isso, tomaram-se financistas dos soberanos absolutistas e do Estado Nacional emergente. A especial condição dos judeus da corte, nos séculos XVII e XVIII e da família de Rotshild, no século XIX, neste contexto, é consequência da posição política especial dos judeus da Europa. Cf. Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo, I parte -Anti-semitismo, pp. 23-111.

40. Em O Judeu e o Moderno Capitalismo (1911), Sombart defende que o processo de acumulação capitalista teve início com a expansão dos judeus pela Europa do Norte e Central , num contraponto às ideias de defendidas por Weber em O Protestantismo e a Origem do Capitalismo. Este é o primeiro texto no qual Sombart adota a tese do judaísmo como capitalismo, que Marx defendera na "Questão Judaica". Sombart, por sua vez, abandonaria o economicismo escatológico do Jovem Marx pelo nacionalismo romântico, a ponto de tomar-se, com o seu O Socialismo Alemão (1934), um dos autores oficiais da Amanha Hitlerista.

41. A esse respeito, é insuperável o livro de Hannah Arendt, Eichmann Em Jerusalém.

42. Himmler referiu-se explicitamente ao extermínio em 4 de outubro de 1943, na cidade de Posen, num discurso para os generais de divisão (Obergruppenführer) das Waffens S S. Reproduzo aqui a parte do discurso que trata da questão judaica, que é de uma aterradora clareza com relação à mentalidade da cúpula nazista e às suas práticas: "Quero mencionar, perante vocês, outro assunto muito difícil, com toda a franqueza. Entre nós, ele deve ser falado com toda a abertura de uma vez por todas; mas jamais devemos falar nele em público. Assim como não hesitamos em cumprir nosso dever tal como nos foi ordenado em 30 de junho de 1934, e colocamos camaradas que falharam contra o muro e atiramos neles, assim como não hesitamos em jamais falar neste assunto e não devemos jamais falar nele. Tratava-se de uma questão, é claro, de tato. Graças a Deus, jamais falar nele. Ele fez com que todos nós tremêssemos, mas todos tinham claramente em suas mentes que aquilo seria feito novamente se assim fosse ordenado e se fosse necessário. Agora, estou pensando na evacuação dos judeus, no extermínio (ausrottung) do povo judeu. Esta é daquelas coisas sobre as quais é fácil dizer: "O povo judeu será exterminado/extirpado wird ausgerottet); isto é o que nós estamos fazendo". E então todos aparecem, esses 80 milhões de bons alemães, e cada um deles possui o seu judeu decente. É óbvio, é muito claro que os outros judeus são porcos, mas este é um judeu de primeira classe. De todos os que falam dessa maneira, nenhum parou para observar,; nenhum já viveu com isso. A maioria de vocês sabe o que significa quando 100 corpos estão deitados um ao lado do outro, quando 500 corpos estão deitados lá, ou 1000 corpos. Para passar por isso e, ao mesmo tempo, sem falar das exceções causadas pela fraqueza humana, ter permanecido decente, é isto que nos toma fortes. Este é um capítulo de glória na nossa história, um capítulo que jamais fora escrito antes e que nunca deve ser escrito; pois nós sabemos o quão difícil será se ainda tivermos judeus, como sabotadores secretos, agitadores, traficantes de mentiras, entre nós, em cada cidade - durante os bombardeios, durante o sofrimento e as privações da guerra. Provavelmente nos acharíamos na mesma situação que em 1916/17, se ainda tivéssemos judeus no corpo do povo alemão. As riquezas que ele possuíam, nós as tomamos deles. Eu dei uma ordem estrita, que foi transmitida pelo general S S Pohl, que essas riquezas devem, é claro, ser trans- feridas para o Reich, sem exceção. Nós não pegamos nada delas. Pessoas que falharam neste sentido foram punidas de acordo com a ordem dada por mim no início, que avisava: aquele que pegar um marco que seja, isto é a sua morte. Um número de homens da SS -não muitos - violaram essa ordem e isto será a sua morte, sem piedade. Nós temos o direito moral, nós temos a obrigação para com o nosso próprio povo, de matar esse povo que queria nos matar. Mas não temos o direito de enriquecermos mesmo que seja com uma pele, um relógio, um marco, um cigarro ou qualquer outra coisa. Exatamente porque nós erradicamos um bacilo, afinal, isto não quer dizer que queiramos ser infectados pelo bacilo e morrer. Eu jamais permitirei nem mesmo que uma pequena nódoa de corrupção venha a se estabelecer aqui. Seja lá como ela se forme, nós a queimaremos. Em geral, no entanto, podemos dizer que levamos adiante essa tarefa das mais difíceis por amor ao nosso próprio povo. E nós não temos sofrido qualquer dano em nosso eu interior, em nossa alma ou em nosso caráter, ao fazêlo" Este tipo de referência era incomum entre a elite dirigente nazista e, obviamente, não é reconhecida pêlos revisionistas, que atribuem sentido não literal às expressões de Himmler. Garaudy, por exemplo afirma que a palavra extermínio possui outro significado: "... para expressar a sua decisão de expulsar os judeus do que eles denominavam espaço vital, os alemães empregaram de forma natural outras expressões com o mesmo significado, como Ausschaltung (exclusão, deslocamento, eliminação) ou, sobretudo, Ausrottung (extirpação, desarraigamento). É esta última palavra que tem sido traduzida por extermínio, que em alemão, se diz Vemichtung". Garaudy, op. cit. p.65. Sobre o léxico e as técnicas de extermínio, ver o livro de Jean-Claude Pressac, Auschwit, Techinique and Operation ofthe Gás Chambers, Beate Klarsfeld Foundation, New York, 1989.

43. Citado em Leon Poliakov, O Mito Ariano, p. 184.


Editado electrónicamente por el Equipo Nizkor- Derechos Human Rights el 21feb02
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